Vejo um cemitério onde, sem mais movimento
humano do que dois homens, em silêncio, jogam as cartas. Atiram-nas e biscam-nas
numa laje fria, revestida por caracteres desconhecidos e ocultos talhados em
sulcos profundos. As lajes todas idênticas, perfilam-se criando simetrias
perfeitas no espaço do jardim. Os homens encontram-se protegidos do calor
intenso, pelos ramos exuberantes de uma árvore antiga, solene como o cenário e
como eles, jogadores pagãos, que executam o ritual das cartas como se
estivessem a praticar um acto de grande espiritualidade.
A incongruência desta cena, que pode parecer
chocante, uma heresia, dilui-se na atitude circunspecta, contida, dos
jogadores. Dois amigos. Um, numa ambulância postal, ultima carruagem do
comboio, entrega o correio na fronteira do país vizinho dilacerado por uma
guerra fratricida e absurda. O outro é o coveiro desse cemitério. Vieram os
dois, um dia em que eram jovens, de um algures no interior. Pontos sem nome nem
localização geográfica. De um sítio inexistente, qualquer. Para serem soldados.
Fizeram-se e ficaram amigos.
Estão concentrados no jogo, um jogo simples, elementar,
no entanto a vitória define tudo. Jogam as cartas todos os domingos, é a sua
maneira de descansar.
De quando me lembro desse jogo de cartas e da
minha curiosidade e estupefacção pelos símbolos estranhos de algumas lajes, que
só muito mais tarde vim a conhecer, não é do tempo da guerra. Foi depois disso.
Estava ali levado pela mão do visitante.
O ambiente silente, entrecortado pelo piar
harmonioso dos pássaros e os novelos olfactivos das tantas flores coloridas que
bordavam os canteiros à volta de algumas lajes, vestiam esse lugar da sensação
de paz, essa mesma sensação, tão boa e tão difícil, que se vem a encontrar
noutros locais de culto, que podem ser sinagogas ou bibliotecas.
Frequento mais as segundas, mas nunca mais esqueci
esse cemitério israelita de Lisboa, à Calçada das Lajes, na zona oriental da
cidade, que nesse tempo de obscuridade e trevas, era uma zona habitada por
gente operária e humilde.
Não sei se é exacta a descrição que faço do
cemitério. Foi há muito tempo, eu era criança e às crianças e aos velhos
perdoam-se imprecisões bem intencionadas. Ficou como representação da paz, que para
mim é um lugar onde por vezes paramos para desanuviar dos dias encobertos.
Os dois amigos, há muito falecidos, foram à sua
maneira e sem o saberem, dois seres de luz, que ao contrário do que muitos
pensam não o são só os evanescentes e etéreos que têm asas e voam
teletransportando-se em todas as direcções e tempos. Há anjos entre os seres do
mundo que todos os dias cruzam as cidades a caminho dos seus empregos. Distingui-los
é mais difícil.
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