Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

JOGADOR DE CARTAS QUASE PROFISSIONAL

  Andavam um melro e um pardal a fazerem pela vida num jardim público, saltitando daqui para ali, executando pequenos voos aleatórios e muito rápidos, quando uma criança, das que são irrequietas, começou a atirar-lhes pedras. pequenas é certo, mas suficientes em tamanho e peso para fazerem, no caso de acertarem, mossa. Não sendo, ainda bem, a pontaria o seu forte, esse acto considerado agressivo por parte dos pássaros, assustou-os, sabendo-se que são seres por natureza delicados e sensíveis. Quem assistiu a este episódio foi o senhor Manuel que apesar de se estar a dirigir apressadamente, tanto quanto a compressão do nervo ciático lhe permitia, olhou com atenção, já estava atrasado para o local habitual - uma mesa de jardim coberta de nomes e corações e coisas impróprias, riscados a canivete – onde todas as tardes, chova ou faça sol, joga cartas com os mesmo parceiros, a não ser que um deles misteriosamente, mas previsivelmente, desapareça sem deixar rasto. O senhor Manuel é considerad

ETERNIDADE

  - Quando crescer vou ser como tu? - Não, vais ser tu. - Não quero. Quero ser como tu. - Não podes. Vais ser melhor. - Melhor como? - Diferente. Tu próprio. - Ser melhor para mim, é ser como tu. - Mas eu não sou melhor, sou eu. Como sou. - O melhor. - Se quiseres, quando cresceres serás eu mais tu. - Os dois num só? - Sim. A soma dos dois. - E como vou saber qual é a tua parte e a minha? - Não te preocupes, misturamo-nos um com o outro. Assim não nos podemos dividir. - Está bem. Falta muito para isso acontecer? - Já aconteceu. - Quando? - Desde que nasceste. - Não me dei conta. - Pois não. Os filhos são a continuação dos pais. Sempre assim, uns dos outros. - Assim não te vou perder. - Pois não, tens-me sempre contigo. - Queres dizer que nunca ficarei sem ti? - Sim. Vou-te contar um segredo mas não o contes a ninguém. - Não conto. - Nós os dois, juntos, somos a eternidade.

O SENHOR DARWIN

  O Darwin, um cão que nos habitamos juntos e julgo com prazer comum, é de uma grande seriedade. Por vezes chego a pensar que é ele o adulto e se calhar é. Claro que tem as suas coisas de cão, que a nós nos incomodam por acharmos primitivas e deseducadas. Lamber tudo e mais alguma coisa, sem pudor absolutamente nenhum, cheirar inconvenientemente partes mais susceptíveis, ter um apetite voraz, roer objectos que não deviam ter nenhuma relação directa com esse facto e que alguns deles nos fazem falta para o dia-a-dia, estar sempre com vontade de alçar a perna e não olhar a quê, ter uma fixação doentia por um sofá ou uma cama, sempre que lhe for possível, mesmo em detrimento total da sua magnífica cama com lençóis e tudo que custou os olhos de uma cara generosa. É no entanto e como dissemos muito ponderado. Não alimenta discussões, aceita pontos de vista diferentes sem hesitações, ouve quando tem de ouvir, não se mete nem em política nem na vida dos outros. Não demonstra religiosidade nenh

O GATO

  Está parado, melhor, estaticamente numa posição neutra, tanto tempo ou nenhum, quanto o necessário para ser invisível, mesmo que seja à nossa frente. Ou então desaparece, deixa-se de saber dele, onde se meteu, onde se escondeu. Num canto, debaixo de algo, tapado por alguma coisa, num cimo qualquer, lugar de observação panorâmica, mimetização perfeita. Mestre da camuflagem. Ausência de ruído, anda como que flutuando, sem esforço no movimento que produz, conseguindo as maiores das proezas do equilíbrio. Funambulista, trapezista, trepa-paredes. Aplaudido em ovação. Todas as posições das pálpebras nas suas relações com a focagem, desfocagem do olhar e do que vê, são fortes, vivas, o mistério. Impenetrável ou cristalino. Opaco ou transparente. Meigo, extremadamente, distante, irredutível. Uma festa, todas as festas, aproximação, ninho, afastamento. Frio. Primordial, essência, mistério Depois das palavras. O Oráculo  silencioso.

FAROLEIRO

  O faroleiro tinha como principio quando folgava, não se dar com ninguém, o que facilitava a solidão em que um faroleiro vive. Não quebrava essa ligação permanente, era a sua disciplina. Passando a maior parte do tempo calado, quando estava em sociedade, para não alterar o seu quotidiano, vertia as palavras para dentro e ouvia as dos outros. Não dizia nada. Encostava-se ao canto mais remoto do velho balcão de madeira de carvalho do pub da aldeia e deixava-se estar por aí, todo o dia, absorto, olhando não se sabendo se estava realmente a olhar para os clientes, quase todos, os habituais e meia dúzia não mais. Alguns foram companheiros de escola. Uma cerveja forte, áspera, acre, era a sua companhia. Assistiu nesse lugar privilegiado a grandes acontecimentos históricos: anúncio de casamentos, uma rodada pelo primeiro filho, divórcios, disputa de terras, mexericos corriqueiros e cenas de pugilato, uma arte que se dá com o álcool e a exaltação dos ânimos, infelizmente não místicos. De nom

O ESCRITOR DE PARÁBOLAS

  O Senhor H abandonou a ideia da morte, por resolução pessoal, convenientemente interiorizada, e sem intervenção nem pedido externo no dia que compreendeu que o seu pensamento andava a ser intoxicado por essa recorrência mas que o culpado era outro, não o sabia ainda. Andava nisto há mais de vinte anos, sempre vestido de azedume, cor de breu petróleo, ou petróleo breu, não interessa a precedência, a mesma tonalidade da cor. Fervilhante com a sua ideia incrustada na cabeça, terá mesmo pensado em cometer suicídio, mas depois ficava mal visto e não queria. Tinha ideias fixas. Outras vezes, quando a crise agudizava, pensou em orquestrar um massacre colectivo, que seria ao mesmo tempo uma vingança apoteótica contra a frieza da sociedade, a desatenção profunda, cuja ligeireza leva as pessoas ao engano, e um espectáculo de pirotecnia: todos condenados à solidão, convencidos que andam acompanhados, só porque o vizinho do lado é estridente. O Senhor H era um pessimista, mas tinha de ser alguma

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava