O Senhor H abandonou a ideia da morte,
por resolução pessoal, convenientemente interiorizada, e sem intervenção nem
pedido externo no dia que compreendeu que o seu pensamento andava a ser
intoxicado por essa recorrência mas que o culpado era outro, não o sabia ainda.
Andava nisto há mais de vinte anos,
sempre vestido de azedume, cor de breu petróleo, ou petróleo breu, não
interessa a precedência, a mesma tonalidade da cor.
Fervilhante com a sua ideia incrustada
na cabeça, terá mesmo pensado em cometer suicídio, mas depois ficava mal visto
e não queria. Tinha ideias fixas. Outras vezes, quando a crise agudizava,
pensou em orquestrar um massacre colectivo, que seria ao mesmo tempo uma
vingança apoteótica contra a frieza da sociedade, a desatenção profunda, cuja
ligeireza leva as pessoas ao engano, e um espectáculo de pirotecnia: todos
condenados à solidão, convencidos que andam acompanhados, só porque o vizinho
do lado é estridente.
O Senhor H era um pessimista, mas tinha
de ser alguma coisa, e escolheu essa via filosófica. Foi vivendo pessimista sem
consequências nem dando importância a isso até ao dia, não assinalado, em que
lhe deu pela primeira vez e de modo súbito, o medo paralisante da morte. Foi
num dia que era noite, a noite desse dia, quando estava a dormir. Veio com o
sonho, que é onde se geram as inevitabilidades excêntricas, e não se podem
controlar. Umas esfumam-se em nadas, outras em pesadelos, umas tantas acabam
por se concretizar.
Aconteceu-lhe esta desgraça
precocemente, por volta dos cinquenta, até lá tinha sido só fleumático, o que
não era perigoso, nem para si nem para os que o rodeavam. Foi muito cedo,
quando se vive hoje em dia praticamente em modo automático até perto dos
oitenta. Ter acontecido aos cinquenta dava uma grande margem de tempo, e quanto
mais tempo mais asneira se pode fazer. Nunca mais deixou de matutar no assunto,
embirou mesmo com ele, de tal forma que o escolheu para ser o mais importante e
ocupar o tempo livre do seu tempo mental.
O problema - esse é que foi mesmo o
grande problema - é que não podia partilhar a sua angústia - agora era uma
angústia, felizes os dias de fleuma - com mais ninguém, o que acrescentava
ainda mais dimensão ao objecto singular do pensamento.
No dia em que uma pessoa revela que
anda a matutar na morte, só por dizer e mesmo que em sussurro, internam-no e
deixam de lhe falar. O que ele não queria, nem ser internado nem que não lhe
dirigissem a palavra e o olhassem com comiseração, que é certamente o
sentimento de maior comiseração e embaraço que existe.
Acredite-se na veracidade que agora se
reporta, é mesmo assim, não se pode dizer que se anda a pensar na morte. Os
conhecidos que restam da lista dos próximos, coçada e esbatida de muito
manuseio, afastam-se céleres, mesmo que coxos céleres, e a família começa a
procurar na Net, fotografias simpáticas de casas de
acolhimento terminal, com nomes carinhosos e sentimentais e longe, de preferência.
O senhor H vive com esse fermento a
levedar. Tornou-se um sibarita, uma coisa muito simpática de se ser na fase em
que se pode ser tudo o que se deseja, desde que se tenha uma reforma adequada,
adequada a ser um bom sibarita. Como lhe pareceu óbvio, e eminente, que iria
morrer nos próximos pelo menos vinte anos, que fosse consolado com prazeres.
E tomou gosto a esse estado de negrume de alma cá para fora, a disfarçar,
e de hedonista, no seu íntimo, o círculo frequentado só por si.
Mas não foi assim. A ideia da morte não
deu tréguas. Uma vez instalada, corroeu-lhe a vontade de resistir, a máscara
caiu, passou de hedonista a preocupado.
Pensou, pensou, não era de soluções
fáceis, cobardias, e descobriu que tinha que fazer alguma coisa para se contrariar.
Como não tinha talentos para coisas de
mãos, não sabia fazer nada merecedor de um comentário positivo e honesto,
desatou a escrever pequenos contos. Escrever é fácil, acrescentam-se palavras
umas às outras e a ciência está em saber cortá-las às fatias nos sítios certos,
e que no final tenham um fim, julgava ele que era assim.
Fez isto para se distrair, esquecer a
ideia obsessiva que o carcomia por dentro.
Contos para crianças - ou adultos
imaturos - os seres mais afastados da morte em condições naturais, se é que se
pode pensar assim, mas como tem que se arranjar pretextos para tudo, esse era
menos mau, e apesar de rigorosamente indefensável, compreendia-se.
O Senhor H escrevia contos mais ou
menos infantis que em rigor eram parábolas. Ele não sabia escrever de outra
maneira: era um paternalista.
Foi a forma que encontrou de se
distrair, enquanto imaginava as suas pequenas histórias morais. Quando compunha
o arranjo das palavras com que os construía, não pensava na morte e só assim
podia continuar a viver, dispensado temporariamente da enorme pressão no peito
que lhe causava o pensamento recorrente do cheiro a enxofre (muito
possivelmente a sua sorte futura, na terra teve as suas diatribes não
confessadas. O inferno seria o destino mais do que provável). Quando terminava
um dos seus curtíssimos contos, quase em estilo minimalista japonês, sentia-se
descansado. Descansado porque arejado e também porque ao passar para o estado
físico uma ideia, posta em papel, essa seria mais uma a não levar consigo, para
essa morada a existir e que exige que as almas vão leves despidas dos pesos
acumulados nas suas vidas terrenas.
Um dia, de particular melancolia,
temendo piores consequências se seguisse nesse crescendo, nesse vinagrete de
pessimismo, deu-lhe uma vontade súbita, inadiável. Estava na casa de banho,
baixou-lhe uma ideia, e antes que esquecesse o encadeamento das duas primeiras
frases, fundamentais para a continuação e remate final, secou-se à pressa,
pingando pelo caminho e foi sentar-se na escrivaninha do escritório-biblioteca,
apressado para dar continuidade e final à história que foi esta:
Era uma manhã de inverno cavernoso, as pequenas poças de chuva
poluída, chapinhavam dos sapatos que as pisavam inadvertidamente e das rodas
dos carros apressados.
Não estava no seu melhor, estaria mesmo no seu pior. A sua
perspectiva das coisas era de um ponto de visão muito baixo, demasiado próximo
do chão, onde estava, imóvel, sentado, a pedir.
Teve uma carreira invejável, foi brilhante, momentos únicos. Um
poder imenso, todos os desígnios na mão. Agora, praticamente ao abandono,
escarnecido por todos e omitido por outros tantos, ocupava o seu tempo eterno
sentado na calçada fria das ruas, absorto em si mesmo, mão estendida, o
pedinte.
Um pedinte mas não como os outros, meros pedintes. Este era Deus e
as pessoas que passavam não o sabiam. Ele não o dizia a ninguém, nem sequer
falava.
Sentia-se miserável e com a autoestima em baixo. Cometera um erro
que não poderia ser emendado, nem mesmo por ele.
Não se poderia nunca desculpar pelos erros de omissão que cometeu
na criação do mundo, deixando tantos seres imperfeitos, inconclusivos. O caso
dos homens, eternamente mortais, com um dom especial, que Ele em todos os seres
criados, só pôs à disposição dos homens – o arbítrio – e tão mau uso faziam
dele, magnificando o pecado a uma escala que nunca pode imaginar, o efeito
contrário do que se pretendia com a ideia original.
Agora era tarde para arrependimentos e a maior parte da humanidade
sem que ele lhes fizesse prova de vida, há tanto tempo incógnito, dado como
morto, não o desculpava não os ter completado: a dádiva da imortalidade.
Essa culpa, transporta-a Deus às costas pela noite das noites
infindas de todos os tempos ainda por vir, intermináveis noites essas.
A este pedinte quase invisível aos olhos dos que passam atarefados
com coisas nenhumas pessoais a não verem nada, quase nem uma moeda davam,
poucas.
Aos homens as coisas dos homens, a deus as coisas de deus.
E a pobreza é uma coisa que incomoda as pessoas, pelo que viram a
cara para o outro lado.
Deixou-se ficar, vários dias, poucas moedas recebeu, algumas
atiradas suficientemente longe para não acertarem (o que seria difícil) no copo
de plástico pousado no chão à sua frente. Uma imitação sua do altar.
Depois, mudou de lugar, outra cidade, e continuou assim todo o
sempre do sempre. O seu castigo é ser mendigo, da atenção dos homens,
desaprenderam de perdoar.
Quando terminou a parábola, o senhor H,
regressou à casa de banho, preocupado não só com o teor da mesma, como não lhe
ter saído um texto para crianças. Para completar a sua higiene diária, faltava
a massagem facial com a loção de cheiro, o ritual de um homem para dar-se como apresentável
ao mundo.
Saiu de casa com chapéu, para almoçar,
e sentiu-se aliviado e revigorado porque estava um bonito dia de sol e o conto
tinha saído praticamente bem na primeira vez. À noite as emedas finais, e mais
um para o seu arquivo pessoal.
Comeu com delícia e interesse e
sabedoria, as sardinhas primorosamente assadas pelo Saviola, um alfacinha
genuíno, mesmo não o sendo o nome, nado e criado num bairro local, dos típicos.
Um verdadeiro artista, um homem com um “toque” divino – não fosse ofensivo
dizê-lo assim – para o “ponto” do carvão e do tempo de assadura de um dos peixes
mais considerados dessa gente, como irmãos.
Depois de almoço passeou sem direcção
definida, para digerir da iguaria, saudável nos óleos essenciais, e embalado no
passeio maturou nos pormenores da parábola, excelente ideia que tinha tido para
escrever aquele conto.
Chegou mesmo a achar – a meio da tarde
– que tinha encontrado naquela pequena história, a solução com sentido para
varrer definitivamente da cabeça o problema da morte, assunto que lhe azedava a
vida constantemente, porque gostava de vir a ser imortal.
A encontrar-se um culpado, era o
Senhor, não tinha sido suficientemente atencioso (Ele o ser de todos os
detalhes) ao concluir a sua obra, e dando, como seria de merecimento natural,
aos homens, o dom da imortalidade. Se era para ser à sua Imagem, à sua
imagem tivesse sido.
Havendo um culpado identificado para a
morte, a vida já poderia ser apreciada. Esqueceu o assunto e gozou dos odores
adocicados de uma brisa quase inexistente, soprada no ar, o anúncio de
Primavera. Deambulou.
Ao final do dia, e depois de regressar
a casa, composto e dentro da normalidade, como sempre, quando parecia que tudo
tendia para terminar no sossego reparador da noite, resolvidos todos os
mistérios, o senhor H pôs termo à vida, no terceiro quarto, o seu, a contar de
quem entra na enorme casa cheia de quartos vazios, que vá-se saber nunca
transformou em negócio de “cama e pequeno-almoço”. Fê-lo de uma forma que não
se revela dada a eficácia absolutamente indolor do método, que a ser
identificado poderia incentivar os demais a seguir a via da
libertação.
Porque o fez quando todo o universo
estava tentado a assegurar que ele tinha apaziguado em si o azedume, é
realmente um grande mistério.
O senhor H, naquele momento trágico, e
sem nenhuma possibilidade de vir a ser velado com missa final, pelo seu
comportamento inadequando quando à forma de morte que escolheu para si, a não
natural, não publicou nada em vida.
Os seus contos-parábolas estilo haiku
sintetizados ao modo europeu, com mais palavras na falta de símbolos gráficos,
enchiam os cadernos, perfilados na prateleira de parede por cima da mesa de escritório
encerada. Todos os cadernos eram pretos (havia mais do que pistas, para quem as
quisesse ver, que ele era um espirito afligido, que iria acabar em desgraça).
O Senhor H era um homem doente desde
pequeno e ninguém sabia. Morreu anónimo e ninguém soube porque mudou de ideias
- podia perfeitamente ter continuado vivo a ver no que dava - quando descobriu
a desculpa que lhe faltava – a ele e a todos os homens - por casualidade de
escrever umas coisas para se entreter.
Os seus contos, bastante mais tarde, e
por uma dessas coincidências da vida que só acontecem depois de morta, vieram a
encontrar alguns leitores excêntricos, descobertos através de comentários
esparsos, aqui e ali, na imensa sopa galáctica da Internet. Desconhece-se quem
encontrou os originais e os divulgou,
Há gostos para todos os géneros de
literatura e as parábolas sendo geralmente curtas são de leitura rápida e
fortificante. São como as imagens das letras, ou melhor ainda, os tweets.
O senhor H deixou contos
infanto-juvenis um tudo nada macabros de muita sensibilidade, e as parábolas,
todas e por junto, deram num belo e ilustrado guia para a moralidade dos seres.
Terá sido o senhor H lido por Deus,
mesmo que enterrado sem ser benzido? Isso daria uma nova parábola, mas ele já
não estava cá para a escrever.
Não se sabe se Deus ainda pede e
mendiga por ruas mais ou menos concorridas, andam todos demasiado ocupados com
as suas coisas para olharem atentamente para o lado.
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