Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

NEGRO DOS OLHOS

Os olhos, redondíssimos, enormes, eram de um preto límpido, cor pura. Sobressaindo ainda mais e hipnotizando onde os pousa, cercados de branco cristalino, o branco absoluto. Deixou-me uma impressão forte, cunhou-me a ferro e fogo, um instantâneo para mais tarde recordar, num desses dias preguiçosos, em que memórias sobem à linha de água, para nos atormentar com coisas passadas, ou então deliciar-nos. Será o caso. A mais franca das vontades, não encontraria palavras para descrever essa beleza, para mais apimentada de mistério, já que do seu rosto, a anunciar pelos olhos, nada mais se podia ver. Fica o jogo da imaginação, ou a desilusão sem possibilidade de um reencontro futuro. Essa mulher em todo o seu potencial de ser lindíssima, mas não o saberemos nunca ao certo, tinha o rosto tapado, por uma máscara obrigatória. Lembro-me dos rostos enigmáticos das mulheres de niqab, negros trajes a caírem pelos seus corpos com contornos e sou transportado para outras ge

DA MULHER QUE LIA UM LIVRO

NÃO RESISTO É mais forte, é um impulso, não me contenta a observação, tenho necessidade de saber mais, compreender. Só conhecendo-a, mas isso é precisamente o mais difícil. Dada a minha natureza tímida, muito tímida diria, abordar um desconhecido, partindo de mim essa acção, é praticamente uma impossibilidade pessoal. Primeiro perco um tempo imenso a pensar em estratégias de abordagem, em alinhar um discurso que seja coerente, que faça sentido. Colocam-se tantas dúvidas que dificilmente chego a conclusões finais sobre o guião desse discurso. Seguidamente, e porque começo a ficar mais irrequieto, decido se, nessas condições, devo ou não avançar. Vejo e revejo cenários. Mais nervoso ainda. Vacilo muito. Quando avanço, nem sempre atinjo o objectivo proposto, já que ou tropeço quando estou na eminência de me aproximar do desconhecido, e volto atabalhoadamente para o ponto de partida, desistindo; ou balbucio umas palavras e gaguejo, ficando na posição sem ponto de fuga d

IDENTIFICAÇÃO DO VOYEUR

Chamo-me Nuno e sou eu o homem que observa, no jardim, a mulher que lê livros. Observo-a não só a ela, mas a praticamente todos os que despertam a minha curiosidade.  Confesso que sou assim desde que me conheço.   Sempre preferi estar sentado na periferia de onde está a ocorrer a acção, num ponto de invisibilidade, sorvendo todos os pormenores do que se está a passar à minha volta. É tão forte esse vicio (não sei se o é), que sou muitas vezes apanhado a olhar como um basbaque, insistentemente, talvez assustando alguém que por uma ou outra razão, ou mesmo por uma razão muito desinteressante para a generalidade das pessoas, atrai a minha atenção, deixando-me colado a ele, ou ela, ou à coisa. Não tem nada a ver com o outro sexo. É indiferente. Pode bem acontecer que ponha as vistas num casal aparentemente banal, e não despegue. Assim como pode acontecer que as ponha numa composição de flores que por algum motivo ache desenquadrada. Não sou um perfeccionista, não é isso.

MULHER A LER

Estava instalada a desorganização do mundo.  Desmoronavam os castelos de cartas. As metáforas perderam o brilho. As poesias perderam a imunidade. Homens e mais homens caiam, uns depois de outros, frente ao inominável. Eles lutavam com o que tinham -quando se trata da sobrevivência, todos bravos, corajosos, heróis para si mesmos - mas parecia uma guerra perdida, o inimigo cada vez se agigantava mais, e mais, ceifava rente os rebentos que tentavam a sua sorte, fazer-se flor. O maior de todos os problemas, o problema sem solução, é que esse inimigo era invisível, impalpável, indetetável a olho nu. E não se fala de micro-organismos. De fraternidade, é o que é. Em consequência do mundo ser nesse momento um sitio mal frequentado e impróprio, uns ficavam em casa, não se sabe se sábios nessa decisão, entediavam-se muito. Não estavam habituados a estar em casa, junto dos seus. Tinham esquecido as artes do convívio, perdido por desnecessário o paladar da conversa. O tempo

SORTE

A sorte, que não é, outra coisa, não capturamos o nome, de estares aí, a viver a vida mesmo que  banal, e eu como tu, sem virmos a deixar dito ou feito, nada de relevante. Fosse religioso, diria um bem, benção. como não sou só posso terrenamente deslumbrar-me todos os dias que desperto, por essa sorte que não o é, de estar vivo e ter-te convivido,  banais os dois.

MONSARAZ E O PAULO QUE CUMPRE ANOS

Um castelo no alto de uma colina não é uma novidade. É uma conjugação antiga com benefícios para ambos. Começa-se a ver ao longe, a aproximação pode-se prolongar, vai-se construindo uma opinião madura, com alguma folga de tempo. Dá para sopesar o suficiente. Chegados, ou já se gosta o suficiente, ou é uma visita perdida, inútil (já que se chegou ali, tiram-se uma fotografias, e resolve-se a questão). Este castelo tem muralhas e dentro um ajuntamento antes habitacional, agora mais turístico. Caiado, branco e puro. Arranjadinho. Tem uma torre de menagem (dizem que obra de Dom Dinis. Se foi, fez bem. Aprecia-se), abraçada a uma pequena arena circular, com bancadas em pedra. Homens e touros, certamente. Nesse dia, alguém desconhecido mas com sensibilidade, traçou presume-se com um pau, ou bengala, ou chapéu-de-chuva, um coração. Sendo este símbolo de um poder imenso, desculpam-se temporariamente os toureiros e olha-se para o enquadramento como uma coisa rústica, primeva, mediev

MELANCOLIA

José António tinha um reservatório com capacidade de armazenamento para três mil litros de melancolia não tratada, em bruto. É muita capacidade. Com um reservatório destes, está-se à vontade. Até encher, acumula muita melancolia. Era por isso que José António não estava preocupado com excessos. Dava e sobrava. Não tinha que se preocupar com o risco vermelho, nunca chegaria a isso. Nestas condições, as ideais para não se olhar a meios – tomara muitos terem um reservatório com esta volumetria – José António sabe que pode usar e abusar da melancolia. Para quê poupar-se?, um mãos largas. Refira-se que José António no seu quotidiano, nem se lembrava do reservatório. Era uma coisa longínqua, uma facilidade que fazia parte da sua propriedade: um andar térreo com pátio, onde esmerava numa pequena horta com intenções biológicas e onde era permitido mijar o cão, de raça minúscula, que não mijava por ai além, não dando cabo das flores e do cultivo. Tinha coisas mais importantes co