Um castelo no alto de uma colina não é uma novidade. É uma conjugação antiga com benefícios para ambos. Começa-se a ver ao longe, a aproximação pode-se prolongar, vai-se construindo uma opinião madura, com alguma folga de tempo. Dá para sopesar o suficiente. Chegados, ou já se gosta o suficiente, ou é uma visita perdida, inútil (já que se chegou ali, tiram-se uma fotografias, e resolve-se a questão).
Este castelo tem muralhas e dentro um ajuntamento antes habitacional, agora mais turístico. Caiado, branco e puro. Arranjadinho. Tem uma torre de menagem (dizem que obra de Dom Dinis. Se foi, fez bem. Aprecia-se), abraçada a uma pequena arena circular, com bancadas em pedra. Homens e touros, certamente. Nesse dia, alguém desconhecido mas com sensibilidade, traçou presume-se com um pau, ou bengala, ou chapéu-de-chuva, um coração. Sendo este símbolo de um poder imenso, desculpam-se temporariamente os toureiros e olha-se para o enquadramento como uma coisa rústica, primeva, medieval.
No ponto de apoio último dessa torre, ou se tem asas (imaginárias que sejam) e se voa, ou não se pode ir mais alto que isso, que se queira. Ainda assim, sentando-se e com paciência, assistisse ao descerrar do sol. Com ele leva o dia, a luz e o quente, num espectáculo em cartaz permanente desde a aurora do mesmo, conteúdo multimédia que pirilampa como uma primeira vez, no receptáculo das emoções que dá pelo nome de coração. Isto, para os argonautas que voaram e nos aprendizes que se sentaram no cocuruto da torre de menagem (dão-se beijos entretanto e acontece com alguma frequência nos que se sentam à espera).
No retorno, depois do festim, faz-se o caminho de volta até à saída, num silêncio amigável. Cúmplice de todos. A igreja está fechada. Mais uma. Se é para ser assim, como ser fiel se não se consegue entrar? Há sempre portas depois de portas, com cadeados pesados e sinais de ferrugem. Não importa. O caminho é interior. As mais belas catedrais, transportamo-las nós. Somos nós.
…
Dois barris de madeira assinalam o eixo, o centro, não do mundo, mas desse pequeno mundo. Estão pousados numa praça, da liberdade. Do lado oposto, uma igreja, dizem que neogótica, desmedida no tamanho para o tamanho da praça, bizarra, por dentro mais ainda: despida e húmida.
Não chegou a património nacional. Critérios não se discutem. Há sempre a probabilidade estatística provada e comprovada que os directores gerais e os presidentes dos institutos mudem com frequência. Na mudança de ares, e nessa circunstância, volta-se a meter o caderno a concurso. Pode ser que dê deferimento.
Não será totalmente neogótica, mas que mal viria ao mundo ter reconhecimento? E isto de uma designação, é colar um nome a um preconceito. A arte é um potencial inesgotável de criações não catalogadas.
À volta dos barris, uma mão bem cheia de homens amplamente volumosos, hidratam-se quanto podem. Bebem quantidades astronómicas de cerveja. O vinho virá depois. Riem como miúdos, pregam-se partidas uns a outros. Tudo amigos. Não estão presentes mulheres naquele local específico.
O dono (tem à-vontade para o ser) não recebe dinheiro pelos pedidos. Contas é no fim, ele é que as faz e é soberano e cada vez chegam mais homens, barrigudos e sedentos. Como pode ele lembrar-se de cobrar tudo, se continua num ritmo aeróbico de servir imperiais, copos de vinho, queijo, presunto, azeitonas? Não está preocupado com contas. Dá sinais evidentes de ser bastante feliz. Quando se acerta na profissão, é uma bênção.
Todas as ruas estão desertas, como a igreja, menos neste ponto geodésico. Não se veem mulheres nas ruas, assinala-se já a sua falta pela segunda vez, começa a ser incómodo. Quanto ao resto não podia ser mais perfeito: um fim de dia de temperatura amena, e umas risadas com um grupo de amigo, brindando-se a isso.
No ar, o odor quente de madeira queimada. Acolhedor. Não há disso na cidade. Estabelece-se automaticamente uma religação ancestral, o cheiro da lenha queimada dentro da gruta, a nossa primeira casa.
Os homens estão cada vez mais animados, recebem bem toda a gente, também os forasteiros. As rodadas de cerveja são para quem se servir. Estão ali, para quem quiser.
Do nada, sem que se espere, ouve-se o som grave, pianíssimo, de uma voz humana. Uma coisa que vem de dentro. À medida que aumenta o volume, outras vozes se juntam. É um vai vem. Os corpos abraçados, irmãos, balançam ondulando ainda mais o som que sai das suas bocas: sérias, hirtas, olhares semicerrados, interiorização.
É uma missa. Pagã. Uma liturgia do transcendente, executada por homens, pequenos pecadores inconsequentes, que frequentam uma igreja sua, pessoal, primordial.
Se Deus tivesse naquele preciso momento para descer à terra, seria neste lugar, à roda dos barris. E, inusitadamente, ficaria completamente à-vontade, entre familiares, confraternizando e talvez mesmo, pregando uma ou outra partida aos irmãos que à sua volta, com um copo na mão, cantam palavras que não são tristes, que mal se entendem o que dizem, emitindo pelo sopro, um poderoso campo magnético, atraindo para aquele seio de confraternização.
De regresso à realidade do banal, o jantar foi um cozido de grão, continuou-se na celebração do vinho, muita chalaça, cumplicidades fraternais, e a vida, esta vida do usufruto desabrido dos momentos efémeros de felicidade concentrada, é recomendável para todas a idades.
Fomos também para comemorar um aniversário, e quando a razão é essa, valem os quilómetros que se galgam, para vir a desaguar, no ponto mais central do mundo, onde Deus e um punhado rijo de homens felizes e gordos, fechando o perímetro de uma barrica de vinho, despreocupados das suas arrelias, bebem e cantam e contam anedotas mesmo picantes, porque o sol já se pôs e amanhã haja o que houver, o dono do “Canto Alentejano” está à nossa espera: haverá lá melhor sunset que este!
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