Estava instalada a desorganização do mundo.
Desmoronavam os
castelos de cartas. As metáforas perderam o brilho. As poesias perderam a
imunidade. Homens e mais homens caiam, uns depois de outros, frente ao
inominável. Eles lutavam com o que tinham -quando se trata da sobrevivência,
todos bravos, corajosos, heróis para si mesmos - mas parecia uma guerra
perdida, o inimigo cada vez se agigantava mais, e mais, ceifava rente os
rebentos que tentavam a sua sorte, fazer-se flor.
O maior de todos os problemas, o problema sem solução, é que
esse inimigo era invisível, impalpável, indetetável a olho nu. E não se fala de
micro-organismos. De fraternidade, é o que é.
Em consequência do mundo ser nesse momento um sitio mal
frequentado e impróprio, uns ficavam em casa, não se sabe se sábios nessa
decisão, entediavam-se muito. Não estavam habituados a estar em casa, junto dos
seus. Tinham esquecido as artes do convívio, perdido por desnecessário o paladar
da conversa. O tempo demorava mais do que o tempo habitual a passar. Uma noção
de tempo parado. De repente, encontrando-se todos juntos, não tinham o que
dizer uns aos outros.
Dos que se entretinham, entretinham-se com um pouco de todas as
coisas passíveis de ser entretimento. Arrumavam coisas de um lado para o outro,
inventavam cozinhados nunca experimentados a qualquer hora do dia e da noite,
faziam máquinas de roupa constantemente, viam filmes e séries e voltavam sempre
ao primeiro episódio quando a série agradava, telefonavam aos queridos e a
outros quando esgotavam a conversa com os queridos, desconversavam uns com
outros só para passar o tempo, iam à janela, olhavam profundamente para o céu,
tentavam tirar conclusões credíveis sobre a possibilidade de o dia de amanhã
ser mais radioso que o de hoje.
Cada um inventava o que podia. Ele, o que fazia era escrever. Escrevia concentradamente na distração total do que
estava a acontecer à sua volta, uma história que não lhe saia da cabeça. Instalou-se e não o abandonou. Apesar da
solenidade e preocupação do momento, eram obsessivas as frases que lhe saiam
encadeadas e em ordem sobre essa história, e o momento que esta ideia escolheu
para ocupar a sua atenção por inteiro, foi precisamente quando se instalou a
desorganização.
De uma mulher que lia livros num jardim, era do que tratava. Ele
estava empenhado em desvendar a razão pouco comum, de uma mulher dirigir-se
continuadamente a um jardim público para exercer um privilégio individual, mas
desnecessário.
O assunto absorve-o tanto que praticamente se esqueceu que lá
fora espreita a peste, e escrever uma futilidade e ainda por cima pesada num
jardim, público, agora local proibido, só podia ser sinal de uma demência a
abrir caminho, ou então, pior, dedicar o tempo livre a um assunto absolutamente
desnecessário.
Que interesse tem ler um livro? que interesse desperta uma mulher
que lê um Livro, sentando-se para isso sobre a relva fresca e verde de um
jardim? Talvez nenhum, mas em boa da verdade, poetizar a liberdade, alimenta o
ânimo.
Ele, este homem estranho, não ouve ninguém, isolou as frestas
todas, e continua impassível dedicado ao seu assunto. A coisa mais importante a
que está dedicado.
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