José António
tinha um reservatório com capacidade de armazenamento para três mil litros de
melancolia não tratada, em bruto. É muita capacidade. Com um reservatório
destes, está-se à vontade. Até encher, acumula muita melancolia.
Era por isso
que José António não estava preocupado com excessos. Dava e sobrava. Não tinha
que se preocupar com o risco vermelho, nunca chegaria a isso.
Nestas
condições, as ideais para não se olhar a meios – tomara muitos terem um
reservatório com esta volumetria – José António sabe que pode usar e abusar da
melancolia. Para quê poupar-se?, um mãos largas.
Refira-se
que José António no seu quotidiano, nem se lembrava do reservatório. Era uma
coisa longínqua, uma facilidade que fazia parte da sua propriedade: um andar
térreo com pátio, onde esmerava numa pequena horta com intenções biológicas e
onde era permitido mijar o cão, de raça minúscula, que não mijava por ai além,
não dando cabo das flores e do cultivo.
Tinha coisas
mais importantes com que se preocupar, como por exemplo porque não conseguia
ser um indivíduo animado, alegre, se a vida nem lhe corria tão mal assim,
comparando com muitos outros de quem ouvia relatos ao vivo e lia nos jornais.
Talvez por isso tinha um reservatório tão grande. Por vezes as evidências,
mesmo ao agarrar de uma mão, fogem-nos da vista, logo da atenção, daí a serem
esquecidas, é um tudo nada.
Um dia, mero
número do calendário, em que nada pendia para nada, nem positivo nem negativo,
nem neutro, José António vê-se a encargos com um problema que começou por ser
doméstico e depois extravasou.
Tudo
decorria normalmente: ele nas suas actividades quotidianas, seguindo a linha de
anonimato que pretendia levar até ao fim. Não vindo nada nem ninguém a dar
conta dele, ainda bem, estando na paz de não ser incomodado, não deixa pegada.
Eis que sentiu que os pés lhe fugiam, ou a terra debaixo dos pés, melhor
dizendo. Era mesmo toda a estrutura que o sustinha que se esboroava. É claro
que este seu sentir não foi assim tão rápido: começou com uma moínha, deu-se a
notar pelo dono dos respectivos pés, aumentou de intensidade, e só veio a
esboroar passado tempo suficiente, para o nosso personagem ter a certeza de que
estava a acontecer uma coisa única. Histórica. Catastrófica (ainda não sabia
mas viria esse conhecimento logo a seguir).
Como
explicar essa sensação? Não os assentava bem, os pés. Parecia que o chão
adquiria uma viscosidade que antes não tinha. Viscosidade e magnetismo.
Facilmente captou
no seu entendimento de homem inteligente o que se estava a passar: o depósito
da melancolia estava cheio e começava a inundar o chão da casa. O sinal de
alerta não tinha sido dado, ou ele não o apanhou. Como era aquilo possível se,
que se tenha dado conta, não segregava mais melancolia do que antes, pelo
contrário era até mais selectivo. Foi o alerta que não funcionou, pensava.
Todos os
estados de alma, emoções e o que se lhes chame, tinham reservatórios próprios e
sendo bens acessórios da vida, havia empresas especializadas na gestão dos
depósitos e no atendimento ao cliente. Havia mesmo um serviço médico-técnico
dedicado a estes assuntos. Através de uma subscrição acessível, já era
subvencionada pelos Estados não tiranos, punha-se à disposição um piquete que
ia a casa medir os níveis dos seus depósitos, prestar conselho e ajudar a
resolver situações de emergência. Havendo contaminação exagerada, tratam
igualmente do utilizador através de uma psico-terapêutica à medida, ou sendo o
caso mais grave, ordenavam o seu internamento.
O depósito
tinha uma válvula de segurança. Não tocou já se sabe. Não havia nenhuma razão
em particular para isso acontecer. Também não sentiu imediatamente (a médio
prazo era uma incógnita) nenhuma alteração pessoal. A vida continuava na mesma:
nem boa nem má: sofrível, servida sem exageros. Não tinha mais tristeza ou
pensamentos depreciativos sobre a sua felicidade, neste caso curtinha. Estava
em níveis aceitáveis, sem necessidade de elaborar pensamentos destruidores
sobre a sua pessoa, lamber mais intensamente as feridas habituais ou recriminar
ainda mais a sua baixa auto-estima, quando sabia perfeitamente que a culpa é
sempre da mãe, ou também, do pai.
Inicialmente
o fluxo da fuga era pequeno, só gradualmente é que descambou.
Agora não
era o momento para procurar explicações, tinha que conter a intrusão, não
deixar que extravasasse. Começou por recolher em baldes, mas rapidamente
percebeu que não conseguia recolher a quantidade cada vez maior de melancolia
espessa que agora jorrava com um borbulhar a fazer lembrar as fumarolas dos Açores.
Era a recordação delas – daí a associação - tem uma fotografia em que aparece
em pose de auto-retrato, e as fumarolas como pano de fundo.
Nem se
lembrou de chamar o piquete. Acreditava ser capaz de conter a melancolia, que
já escorria em maior quantidade.
A situação ameaçava
ficar fora de controlo. Apanhou o mais rápido que pode as toalhas do banho, em
turco, e tentou calafetar as portas. Esta decisão inicialmente pareceu
resultar. Acontece que não tendo escapatória, a viscosidade começou a encher o
espaço da casa, subindo de nível, como se esse espaço fosse o prolongamento do
depósito cheio.
José
António, viu-se inundado de melancolia. Já lhe chegava ao peito e daí a estar
em linha com a linha da boca foi num instante. Era já uma questão da sua
sobrevivência. Num esforço difícil de executar pela pressão contrária a que se
viu sujeito, conseguiu após muito esforço, abrir uma janela.
Logo o nível
baixou, mas também aumentou a quantidade de melancolia a jorrar desmedidamente,
tendo inclusive o José António tido um pensamento fugaz de que aquela
quantidade e a força com que agora já se expelia em jorros de erupção
vulcânica, não era normal, parecia que tinha havido uma razão propositada das
forças desconhecidas que controlam tudo, para fazer coincidir o abaixamento de
uma com a elevação atroz de outra.
Ele não
podia ter acumulado toda aquela quantidade de melancolia na sua vida. Era uma
quantidade sobre-humana e ele era um homem simples e sem talentos, um número
para alimentar a estatística. Um homem assim não produz em vida uma quantidade
exagerada de nada, muito menos de melancolia, um segregado muito subtil que
está na linha de fronteira do sofrimento-prazer.
Se falamos
de tristeza profunda, ou à tona de água, de remordimento contido, de depressão
ligeira a grave, de ansiedade dentro ou fora do controlo da respiração, todos
estes estados, podem acometer um homem com estas condições. Melancolia não: a
melancolia é o único veneno que também pode destruir a alma de uma pessoa, mas
em doses homeopáticas contribui para uma felicidade tépida, quase bem-estar,
ser um mais ou menos, cá vamos andando, nem mal nem bem, assim-assim, e todas
as expressões dúbias que se possam inventar para ilustrar este estado.
O que
aconteceu a seguir é simples, apesar de muito estranho, inexplicável mesmo, e é
como se conta:
A casa de
José António tornou-se o epicêntrico de uma quantidade descontrolada de lava
melancólica que avançava agora a uma velocidade enorme, em todas as direcções,
atingindo tudo e todos no seu caminho de progressão, pretendendo-se dizer com
isto que animais, árvores, pessoas e objectos sem alma nem espírito foram
rapidamente atingidos por esta maré imparável.
José António
foi atirado à distância mas consciente, flutuava agora ao sabor da corrente de
melancolia espessa que o arrastava a ele e aos seres que foi apanhando na sua
trajectória.
O fenómeno
não foi contido nem pela sociedade civil nem pelas entidades oficiais,
impotentes, sem meios, sem saberem o que realmente fazer, até porque
inicialmente menosprezaram o efeito do fenómeno, considerando na sua mania de
que sabem sempre tudo, que se tratava de uma ejaculação prematura e
fora-de-contexto, de um cidadão desgovernado a precisar de apoio social. A
chamar a atenção a si. O Estado não pode infelizmente acudir a todos!
Sabe-se que a melancolia acompanha o homem
desde sempre, nas suas venturas e desventuras, agora, produzido daquela maneira
numa quantidade imensa, é algo nunca visto. E o nunca visto, não se sabe lidar
com ele.
Este
fenómeno do romper das águas durou exactamente as horas que duram um dia. Nem
mais, nem menos. Muitos seres afogaram-se na melancólica, muitos, apesar de
sobreviverem, ficaram marcados para o resto dos seus dias. Animais houve, até
árvores, a gingko por exemplo, que
apesar de não terem a experiência dos estados de alma, devido às grandes
quantidades ingeridas de melancolia, transtornaram a sua genética futura. Criou-se
ali uma mutação genética e não será de estranhar que dentro de pouco tempo se
possam ver manifestações associadas à melancolia, principalmente na árvores que
vivem em ambiente urbano e nos cães e nos gatos, sendo praticamente o que lhes
faltava para serem quase-humanos. Desta vez, os macacos e símios em geral
ficaram a perder. Por não habitarem núcleos urbanos não ingeriram melancolia.
José António
foi um dos sobreviventes. Por receio de represálias, não voltou a casa.
Procurou consolo em Deus e não o encontrou. Desanimado, sem soluções, aceitou
um pacto com o Diabo. O Demo que não perde uma ocasião para filiar aderentes
novos, ofereceu-lhe um carro espampanante e potente, em troca, noite caída e
escura, dele andar pelas povoações e cidades a abrir o maior número de válvulas
que puder, dos depósitos das emoções, nas casas das pessoas, que estando a
dormir e não dando por isso, passaram a acordar todos os dias inundadas de
secreções em níveis altamente tóxicosnalguns casos fatais.
É por isso
que o mundo está como está e as pessoas, distraídas que são, nem se dão conta
de verificarem os níveis de armazenamento e consumo. José António anda mais
feliz, com uma ocupação com sentido; o Demo arregimentou mais um associado; e
Deus continua em parte incerta.
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