Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

O DIZ QUE DISSE

(*) Deixou de ter ideias, fosse do que fosse. Faltando essa companhia, emudeceu, depois de ter ponderado. Passou a ouvir com atenção os pássaros, ouviu-os tão profundamente, que os entendeu. Não seria por isso que iria revelar aos outros homens o que dizem os pássaros. Manteve-se silencioso. Virou-se para o miar dos gatos. Acontece que estes seres subtis falam muito pouco e são por natureza misteriosos, inexpugnáveis. Não disse nada a ninguém sobre esse tema delicado. Olhou para os cães com olhos de os querer ouvir. Quando ganhou o conhecimento do que diziam, não o espantou que o dissessem, mas também não o iria revelar. Eram cães, os homens que os entendessem. Neste estudo dos idiomas e das línguas, distraiu-se com o tempo. Esqueceu-se, o próprio um poliglota, de falar. Resolveu, a sua última resolução, que já eram resoluções suficientes para uma existência: iria escutar o que diziam os homens. Curioso, a tempo de os vir a entender.

O PASSADO FINOU-SE

(*)  ... agora mesmo. - Boa noite Senhor Doutor, com a sua licença que não quero incomodar: a sua sopa, a preferida. Acabadinha de fazer, a escaldar como gosta, com os produtos da nossa horta. Coma-a ainda quentinha Senhor Doutor, os aconchegos do estômago repousam a alma. - Obrigado dona Jesus. Disse o Senhor Doutor sem tirar os ajudantes dos olhos (uma armação barata em massa preta com lentes espessas) dos papéis que esmiuçava meticulosamente à luz de um candeeiro que iluminava, pouco, uma mesa de camilha em renda, feita e oferecida pelas afilhadas no seu aniversário passado. Lá fora fazia noite. As árvores e os grossos muros do palácio, absorviam os sons do exterior, criando um perímetro protegido dos sons da cidade que mesmo à noite, não deixa de produzir os seus ruídos próprios. Com toda a alimária recolhida, o espaço estava em recolhimento. - Com a sopa e a mantinha nas pernas, é remédio santo, aquece num instante. - O problema senhor Doutor desta cas

VERSÃO LIBERAL DE HAIKU - 1

Ambiciono continuar a ter a luz habitual do outono e repudio a impudicícia de uma luz a imitar a luz do verão  imiscuindo-se no meu quotidiano de dezembro. É a última vez que lhe faço este aviso.

A PATANISCA

Foi um olhar de desinteresse, talvez com uma ponta de soberba, senti dessa forma, estaria equivocado. Eu, que já vinha com receio, dei-me por vencido sem contestação. Não era para mim. Ela não podia estar a olhar para mim. Desconhecíamo-nos e eu não tinha nenhuma motivação em a saudar sequer. Iniciar uma relação, alimentar uma comunicação continuada, inventar um código de entendimento para essa comunicação, coisas do âmbito relacional.  Não, eu não queria isso. Dela eu não queria nada, a não ser distância. Incomodava-me a sua presença, ela deve tê-lo percebido. Deu-me espaço, mas cada vez menos espaço. Inteligente, felina, caçadora paciente.Foi estreitando a distância muito a pouco e pouco, num propósito de passar desapercebida, até eu vir a dar por mim sem pontos de fuga. No momento em que me sequestrou definitivamente, é que dei conta de que afinal somos  indissociáveis. tinha sido irremediavelmente seduzido. Nesse ponto da relação já tínhamos estabelecid

PATAGÓNIA

Celeste cumpriu o guião para a sua vida, sem contratempos. Navegou mares tranquilos. Não teve picos de ambição. Arriscou muito pouco e viveu longamente, desprendidamente. Viveu tanto tempo que chegou a esquecer de estar viva. Vegetou na etapa derradeira, não como um vegetal, mas como alguém que espera o nada, a passar o tempo numa espera inútil, a que a biologia obriga. Celeste foi redundante porque não tinha espírito missionário, tinha em si um temperamento de outra índole, deixar-se simplesmente viver, sem glórias nem medalhas.  Acompanhou-se do banal, deu-se bem, não precisou de outros amigos.  Acontece que o banal é uma característica do estado das coisas, não é uma pessoa. Assim, rodeada de uma característica mas faltando a companhia de outro corpo, mais não seja para ocupar sítio, Celeste, viveu uma solidão disfarçada. Talvez para não dar parte de fraca, talvez porque tinha orgulho, talvez por nada em especial senão não querer   anunciar ao mundo que era uma m

DESCUIDADOS DE DEUS- PONTO FINAL

A VIDA SEGUE Não lhe restando alternativa, a vida não se deteve no presente, continuou o seu imparável movimento para o futuro. Tudo acalmou, ao ponto de já ninguém se lembrar que Deus tinha um dia sido julgado num tribunal popular. Deixou de ser notícia, deixou de se a falar de uma coisa que não é fundamental.  Aparte pequenos e esparsos núcleos fechados, os homens foram perdendo a fé. Descomprimiram nas suas obrigações com o divino, ganharam tempo para cuidar de si e dos seus, frutificando uma nova espiritualidade, com raízes na terra, sem necessidade de se revirar os olhos ao céu com perguntas sem resposta, a forçarem a vista, esperando o quê? De ver o quê? e depois voltarem para dentro de casa, desiludidos, trazendo para a sua intimidade mais desconfortos vazios. O céu é bonito e pode-se fazer uma poesia, assim como o mar, uma árvore antiga, um mineral que não seja diamante mas reflicta como um caleidoscópio a luz do sol incidida em si. É nestas coisas que se enc

MANUAL DOS SOLITÁRIOS - CONTO DE NATAL

Enlameado até a décima quinta casa, se não for mais, o pastor e dono do cão farrusco, por lá continua serrania acima, serrania abaixo, pastoreando o seu rebanho de cabras e ovelhas. O farrusco, cada vez mais velho - a vida de cão-pastor obriga a muitas exigências do corpo - no seu papel de cão,  segue fielmente o dono, apesar de guardar cada vez menos seja que propriedade móvel (o rebanho e o patão), seja que imóvel (a casa na aldeia) forem. Deseja que o deixem em paz, um despegamento generalizado nos cães velhos. Ainda assim continua com aquela mania que não lhe sai da cabeça, sendo um mastim, que é um excelente cão de caça. Também já não vale a pena chamá-lo à razão. António o carteiro, aquele que tem uma Famel quase tão velha quanto ele, continua a distribuir cartas, agora raríssimas, desconsiderando-se para a contagem, as dos bancos e as das contas para pagar. António continua a gostar bastante de aguardente, e como em cada paragem nas raras casas ainda habitadas por