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PATAGÓNIA







Celeste cumpriu o guião para a sua vida, sem contratempos. Navegou mares tranquilos. Não teve picos de ambição. Arriscou muito pouco e viveu longamente, desprendidamente. Viveu tanto tempo que chegou a esquecer de estar viva. Vegetou na etapa derradeira, não como um vegetal, mas como alguém que espera o nada, a passar o tempo numa espera inútil, a que a biologia obriga.

Celeste foi redundante porque não tinha espírito missionário, tinha em si um temperamento de outra índole, deixar-se simplesmente viver, sem glórias nem medalhas. 

Acompanhou-se do banal, deu-se bem, não precisou de outros amigos. Acontece que o banal é uma característica do estado das coisas, não é uma pessoa. Assim, rodeada de uma característica mas faltando a companhia de outro corpo, mais não seja para ocupar sítio, Celeste, viveu uma solidão disfarçada. Talvez para não dar parte de fraca, talvez porque tinha orgulho, talvez por nada em especial senão não querer  anunciar ao mundo que era uma mulher só.

O banal foi assim o seu essencial, quando, se alguém a julgasse diria precisamente o oposto, que era um acessório.
Nestas condições, o tempo de um dia, é muito. Tanto para ser suficientemente justificativo de atitudes inesperadas. Asneiras. Há quem as faça em quantidade em menos tempo disponível.

Celeste não era assim, era mesmo redundante. Não é necessário fazer elaborações, imaginar coisas, Celeste é como é, sendo nisso igual aos outros que são.O que não era, era cínica, uma característica que não é do estado das coisas, é das pessoas, e que só o facto de estar presente, é uma putrefação.

Celeste viveu na redundância e bem vistas as coisas, foi melhor assim do que ter vivido no cinismo, na hipocrisia, no faz de conta que conta tudo.

Foi ela e genuína. E assinando essa declaração de princípios, a vida em sociedade fica difícil, já que em geral não se gosta do genuíno, a não ser para as maçãs, que são genuínas porque têm uma cor brilhante, luzida, e depois não sabem a nada. Mas também não criam mais ilusão: passam a fátuas e automaticamente esquecidas no momento seguinte a terem sido consumidas. Celeste não foi nada disto, e é por não o ter sido, que vai morrer muito tranquilamente, merece morrer assim. 

Celeste viu-se a encargos de crianças, inesperadas quando olhava para elas (nunca tinha imaginado que um dia seria mãe), mas vindas ao mundo por agendamento seu.
E foi nesse marco da sua história, ser mãe, quE a vida entrou num revolto de acontecimentos, mesmo sendo as filhas raparigas que sempre a ajudaram, arrumadas, responsáveis, boas alunas, crescidas a adultas sem contratempos nem desgostos.

Celeste usou-se do seu exemplo para dizer-se afastada de mundanidades, mas não lhe serviu de nada, porque disse isso só para si, já que saia pouco de casa, a não ser para as coisas de foro doméstico, compras de básicos e alimentação. Ninguém sabia, dos poucos que a conheciam, que ela era recolhida, porque quando se cruzavam, aparecia-lhes bem composta, cuidada, irradiante de simpatias.

Não quis mais homens na sua vida e teve tão pouco homem na sua vida. Casou, pariu as agendadas e enviuvou, sem ter tido tempo para dizer se estava a gostar. A partir daí, por ser de índole pragmático, não quis continuar uma nova experiência matrimonial. Dedicou-se a si e às meninas.

Quando uma pessoa se reúne destas condições, a sua história pessoal fica íntima, partilhada no espaço delimitado das paredes mais ou menos despidas que forram a casa ou as casas que habita.

Acaba por falecer como os outros, no seu caso, tímida a deixar testemunho que viveu ao pequeno mundo que amou.
Antes de vir a morrer, um acontecimento a acontecer no futuro, ela precaveu-se e resolveu todos os assuntos. Não contra a morte que não tem precaução possível, mas considerando a probabilidade de vir a ser ocupada pelo esquecimento das coisas, dos lugares e dos seus nomes, enão saber como agir numa situação dessas.

Como tinha todo o tempo para olhar para si, ao primeiro sinal, na primeira falha, na primeira “ausência”, branca, como se chame, entendeu haver chegado o tempo de arrumar tudo nos sítios correspondentes e certos.

Começou por arrumar convenientemente as suas coisas mais pessoais, colocando etiquetas, nos sacos, nas gavetas e dizendo muito minuciosamente dito, qual o conteúdo desses sacos nessas gavetas.

Numa primeira fase era suficiente, desde que se lembrasse de relacionar os nomes das coisas com as coisas em si. Sendo meticulosa, não se deu por integralmente satisfeita com aquele trabalho. Tinha de fazer mais, melhor. Deveria agora construir uma sinalética, pôr palavras em frases, para orientar a possibilidade dos seus futuros passos perdidos, das suas indecisões, gaffes momentâneas, branqueamento temporário de ideias, que a ajudasse a ela ou a quem necessitasse de tomar conta dos seus objectos materiais, a encontrá-los e dar-lhes um destino posterior, sem perdas de tempo na procura.

Uma parte valorizável -pela importância que tem- deste trabalho, era criar o roteiro explicativo (graficamente pelas palavras, mas melhor ainda fazendo desenhos, e ela tinha jeito) dos objectos de uso comum e diário. Para que serve o piaçaba e a sua relação com a sanita; uma vassoura tem pelos porquê? Para quê; porque dá lume o fogão? Qual a utilidade de um móvel branco com uma porta e quando se abre faz sempre frio lá dentro?

Este teria mesmo que ser um guia fundamental das coisas pequenas, a ser construído independentemente ou não dos outros roteiros, que ela, já se viu, os fez todos.
Depois de ter inventado os sinais de trânsito de sua casa, podia finalmente descansar, gozar o momento. Estava tudo conformemente arrumado e catalogado. Não se iria perder, fosse afectada pela desmemória e encontraria, e poderia vestir, a camisola certa, reconhecendo-lhe o nome , a cor, e o propósito pelo qual, a bem do decoro e do conforto, deveria vestir a camisola.

Não tendo sido nunca uma mulher de coleccionáveis, parca e suficiente nas coisas que possuía, pensou que esta tarefa seria rápida, mas não foi. Uma vida comprida acumula muito objecto. Demorou algumas semanas.

É num momento destes, irrepetível, em que se dá a tarefa por terminada, que uma pessoa verdadeiramente descansa. Pode ser só um suspiro de descanso, mas é um suspiro inigualável, pela sua dimensão, intensidade, usufruto. Uma vida, resume a este momento, quando se tem o controlo total e absoluto da cartografia de cada um. Nunca ninguém saberá tanto de nós como nós, e é neste momento, que se sente esse poder demiúrgico - pode ser.

Celeste após ter atingido o cume, tomou posse do seu momento mais elevado de prazer, consumiu-o e após o auge, descansou. Descansou para todo o sempre, ou seja, podia dizer que tinha tudo resolvido, conseguido, completado. A partir desse momento e até ao chamamento obrigatório para os paraísos ou os potes de ferro escaldantes dos infernos, era para descansar e gozar da vida, que só se pode gozar, e já o vimos, quando se pôs para trás das costas tudo o que já estava por inerência nas suas traseiras, ou seja o passado, limpo de pós e arrumado em sacos de vácuo para não ocupar muito espaço.

Depois deste trabalho, concluiu que já não tinha nada para fazer na sua casa, e pediu às filhas que a levassem a ver o mundo.

Elas acharam o pedido estranho e a ideia de ver o mundo com noventa anos descabida, mas como gostam da mãe nessa dimensão de ser mãe, que é a dimensão de gostarem todas as coisas cêntricas ou excêntricas que compõem a sua mãe, não puderam dizer  não, apesar de acharem que teria sido melhor colocá-la num confortável lar com televisão no quarto, onde poderia ter uma perspectiva razoavelmente ampla do mundo através das notícias, das novelas e das reportagens sobre as desgraças do mundo, o que é em si, uma forma bastante aproximada de ver o mundo.

Celeste não queria no entanto que esse fosse o seu desfecho, e pediu-lhes que a levassem a ver o mundo desafogadamente, ao ar livre, ao vivo.

As filhas porque não a queriam contrariar e viam que o tempo se estava a escapar das mãos, aceitaram o pedido, na esperança que fosse um esquecimento no dia seguinte. Era uma alteração totalmente inesperada nas suas vidas, apesar de serem mais novas do que a mãe, também já tinham avanço de aniversários comemorados, e sendo mulheres práticas e de razão, a energia e os recursos eram agora de poupança e não desvario.

Celeste que esteve quarenta anos a comer esporadicamente bacalhau (o que ela adora bacalhau), só para poupar para o futuro, poupou o suficiente nas suas contas para viajar. Era essa a sua definição de poupar para o futuro, quando as filhas achavam que ela estava a poupar no bacalhau para uma necessidade futura, de velhice.

Enganaram-se na apreciação, Ela poupou por tinha em mente, para si, um final apoteótico, invulgar. A vida por uma excentricidade.

Celeste quer ir à Patagónia. Porquê a patagónia? Leu algures - perdem-se as coisas interessantes que se leram se não se assentarem, que um homem com um bom emprego e reconhecimento social, deixou uma folha de papel em cima da secretária de trabalho onde escreveu: vou para a Patagónia. Não voltou a essa secretária, foi escrever crónicas de viagens. Foi um acto corajoso. Não há muita gente assim.
Celeste sonhava com a Patagónia desde criança e as filhas nunca sonharam que ela pudesse ter um sonho desses.

Sabiam que a mãe gostava, aos domingos quando a vinham buscar para lanchar, de ir sentada no banco de trás do carro, calada, entretida com as paisagens urbanas em movimento, como um filme. Daí a sonhar com viagens transatlânticas, era puxarem por uma imaginação muito criativa, que não eram, só eram pessoas moderadamente cosmopolitas.

Quando lhes disse que resolvera ir ao fim do mundo não acreditaram. Olharam-se e entendeu-se pela expressão que fizeram que o estado de envelhecimento da mãe estava muito mais avançado do que pensavam.

Talvez já nem tivesse condições de continuar em casa, o que era precisamente o que lhes estava a tentar dizer, que queria ir à Patagónia. Sendo boas filhas, tentaram convencer a senhora que era melhor não pensar nessas coisas, que já não andava como noutros tempos, que a sua flexibilidade  já estava um pouco perra, que tinha de se cuidar, repousar o mais possível, fazer pequenas tarefas simples, e todas as coisas que os filhos dizem aos pais nestas idades e condições sem terem a certeza de que é isso que querem dizer.
Ela desligou dessa conversa e nem lhes respondeu, o que foi bom, julgaram que tinham convencido a mãe.

Deram a sua volta habitual â margem do rio, foram tomar um chá e comer um nata numa pastelaria tradicional da Baixa, agora local decadente de atracção turística, e voltaram rapidamente a para suas casas, apressadas para combinar com unanimidade, como tomar a decisão de tirar a mãe de casa e pô-la num alojamento de repouso para pessoas entradas nos anos.

Teria melhores atenções, profissionais, era mais bem cuidada, tinha outras senhoras e outros senhores da sua idade para falar e conviver, fazerem jogos, verem muita televisão. As pessoas desregulam da cabeça por estarem sozinhas não é por ficarem velhas, pensavam elas que era assim.

Nesse domingo, quando ficou sozinha, Celeste que tinha tudo arrumado e catalogado, encaminhou-se imediatamente ao local do armário do quarto onde tinha as roupas mais quentes, de inverno, que já nem usava por já não haver invernos frios. Mas na Patagónia certamente que seria inóspito, rude.

Arrumou tudo meticulosamente numa mala fora de moda, deixou nos lugares agora vazios das roupas, papéis a dar conta das faltas e do lugar das mesmas e a explicar a situação. Futuramente, ela ou outra pessoa, compreenderia ao ler os papéis o significado aquele espaço vazio, em branco.
Mas porque razão escolheu Celeste a Patagónia, se há todo um mundo muito mais perto que ela não conhece (foi uma vez em toda a vida a Badajoz)?

Era com certeza muito jovem, mas já com idade de entendimento. O seu pai fora marinheiro e conheceu todos os mares. Porque era um homem carinhoso e gostava das filhas, três, Celeste a mais nova, quando regressava das suas longas ausências (as vezes três meses), tentava recuperar o tempo longe das filhas, rodeando-as de carinhos. Sentava a mais pequena ao colo, e esta muito curiosa pedia-lhe histórias. Ele contava-as, intermináveis e aventuras das suas viagens, dos locais ermos, alguns perdidos da presença dos homens, e ela adormecia-se nesta cantilea, e ele, embevecia-se nesta cantilena. Era assim o amor dos dois.

Celeste cresceu, fez-se mulher e sem nunca o ter feito, conhecia o mundo, pelo menos a parte do mundo que é banhada pelos mares. Mas conhecia o mundo de uma forma pessoal, ou seja, da forma das memórias das histórias do pai, traduzidas por ela, na sua cabeça, em sucessões de imagens imaginadas. A sua ideia de albatroz pode não corresponder ao que é realmente um albatroz. Ela nunca viu nenhum, só imaginou com base em informações exteriores à sua percepção. E Celeste sabia que as coisas podiam ter esse desfasamento. Só a partir de agora o poderia comprovar, já que tinha andado entretida a viver toda a sua vida, sem tempo para bizarrias.

Era por achar ser tempo, que decidiu partir, ver o mundo, para avaliar da veracidade das imagens que criou dele, e talvez vir a maravilhar-se em frente a uma cascata de água ribombante, fenómeno a que nunca assistiu.

Passou uma semana e no domingo seguinte, sentou-se numa cadeira ao lado da mesinha do telefone que está ao lado da porta de casa, às nove horas em ponto, depois de lidada a casa, penteada e uma ligeira cor rosada nas maças do rosto, hábito estético que a acompanhou sempre. Esteve praticamente sem se mexer desde essa hora.

As filhas chegam por volta das quinze. Ela espera-as sorridente e com uma imensa tranquilidade, sentada nessa cadeira com uma mala geometricamente alinhada na perpendicular do seu corpo-cadeira, ao alto, com a pega para cima.

Está muito animada com o futuro.

As filhas chegaram a hora, até nisso certas. Ao verem a mãe naquelas condições, de partida, quando era só para verem pela milionésima vez o rio e comerem um nata, ficam muito apoquentadas. Não podem mais adiar uma decisão difícil. Tem de ser hoje. Arranjaram entre sussurros, coisas, que puseram noutra mala. Tinham duas para levar.

Tomou pela mão das filhas um copo de água. Não tinha sede mas elas deram-lhe a tomar um copo de água. 

O local escolhido que já estava de sobreaviso para receber um novo hóspede a qualquer momento, foi avisado.

Bateram a porta com intenção de um bater definitivo, um encerramento, selar o passado. Bateram convictamente e olharam de esguelha. Conheceram tão bem aquela casa. Cresceram ali, viveram as suas alegrias e as suas tristezas naquele espaço, que parecia enorme, aos olhos de quando se é criança. Afinal é um espaço pequeno, rarefeito.


Passou-se tudo rapidamente, no que se pode chamar um lapso de tempo.

Celeste estava plenamente convencida de que a Patagónia era muito mais distante de sua casa. Inclusivamente teria um oceano a separá-las. Lembra-se de as ver chegar, de elas, virem com uma conversa estranha sobre as viagens. Depois meteram-se no carro, ela como habitualmente atrás, calada a olhar para os episódios a decorrerem fora da moldura da janela, a deixar-se ir.

Acordou, sinal de que antes dormia. Pode ser um camarote de um barco, sem escotilhas, pode estar a caminho da Patagónia. Mas não, as paredes não balouçam, o que a leva a desconfiar que não está num barco.

Para não ficar deprimida com a ideia de não estar ainda a caminho da Patagónia, desculpa-se pensando que a esta hora que ela imagina ser noite, quem no seu perfeito juízo quer ir para a Patagónia? Só se viaja acordado, no escuro não se vê nada. Uma das coisas boas das viagens é o espairecimento que só acontece de olho arregalado na paisagem.

Antes de voltar a adormecer, rezou inespecificamente.  Construiu para si os dogmas de uma religião,  apanhou partes que lhe interessavam mais  de umas e de outras, unificou-as numa nova bíblia mental e sua, criou orações e cânticos de louvor. Houve um dia em que descuidadamente as filhas a apanharam a rezar. Ficaram estranhas, a mãe tinha sido sempre irreligiosa. Fizeram algumas perguntas acerca disso, ela interiorizou-se e não respondeu.

Mesmo no inverno e em latitudes temperadas,  estando com atenção e desperto, ouve-se nas horas das matinas, o chilrear dos passarinhos a darem conta ao mundo do nascer do dia. Seja campo ou cidade. É um começo prometedor e glorioso, todos os dias, e isso, apesar de muito importante, quase nunca é referido nas noticias dos jornais.

Bem cedo na manhã do dia seguinte, tendo ou não sido ouvidos os passarinhos com prazer, as filhas que dormiram mal foram ver a mãe.

A realidade daquele dia é que ela não estava.

Não estava como? Não perceberam.

Não se encontrava materializada fisicamente em nenhum espaço visível do lar. Nem ela nem nenhuma pista de si que desse alguma esperança a uma procura bem sucedida.
Não estava ela nem a mala com as roupas de inverno. E foi esse facto, o desaparecimento da mala, que levou a concluir que a sua ausência tinha sido um acto intencional. Às pessoas dá-lhes para tudo e umas quando se julga que estão à mão, escapam num pestanejar.

As senhoras, profissionais de muitos serviços demonstrados, famílias e famílias que já passaram por lá - de visita ou como residentes - não sabiam o que dizer. Sem que tivessem feito propaganda, antes pelo contrário bem caladas ficaram, não era a primeira vez que se dava a fuga de um utente.  Há pessoas que ficam rebeldes uma vida toda, ou inconformados se já não tiverem energia suficiente para rebeldes. São não alinhados. São esses os que escapam. Aquele conforto não é para eles.

As filhas telefonaram de imediato para a polícia que estremunhada foi dúbia na resposta que deu. Era domingo, os serviços só reabriam na segunda feira. Até lá tinham que ser pacientes.

Uma das filhas voltou logo para a casa materna, não fosse a mãe ter voltado. Outra, foi para os terminais das camionetas de carreira, não sabendo, ou baralhada dos nervos que estava, que para a Patagónia não se podia, dali, ir de camioneta. Outra ainda, foi fazer no sentido inverso o passeio do rio, podia ser que a mãe relacionasse aquela terra longínqua com o mar e se tivesse dirigido ao rio.
Não a encontraram.

Celeste partiu, quem sabe se para a Patagónia realizar o maior e mais sonhado dos seus sonhos, e nunca mais foi vista.

As coisas, por casa, por lá foram ficando, arrumadas e cartografadas, na expectativa de um novo renascimento. Os objectos têm os seus roteiros pessoais de ambições e pode ser  que sonhem intensamente,como os homens que tecem em si, numa cabeça imparável parideira de pensamentos, a maior das grandezas e futuros.







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