Toda a história está manchada por crimes tal como toda a vida individual está obscurecida por errores e por faltas. Dir-se-ia que o crime é o pecado original da história humana. Se formos à tradição bíblica começa, já fora do paraíso, com a história de Caim e Abel a primeira guerra civil...
E,
contudo, a partir desta desdita, pode-se distinguir, segundo o que vamos
dizendo, a história manchada por algum crime da história que é crime. Este
último é o que acontece neste processo de endeusamento. Como no amor não é
constante o facto de que raramente um amor entre duas pessoas não seja
obscurecido por alguma falta cometida em comum, alguma cumplicidade; em certos
amores que se resolvem num crime que parece que procuraram desde o início, como
se tal tivesse sido a sua finalidade, o seu único desígnio.
O
endeusamento produz necessária e inevitavelmente, crime, porque apenas com esta
total transgressão da lei se compensa a exaltação absoluta da pessoa. Apenas o
mal pode manter, enquanto dura, o absolutismo de uma pessoa. Está claro que
essa pessoa, o sujeito do endeusamento, se destrói como pessoa, e o mais
terrível para ela, se conseguisse dar-se conta, é que à força de querer ser ela
e unicamente ela, converte-se em algo anónimo, impessoal. Acaba por não ser
nada.
Pois
o ser pessoa contèm em si limitação; toda a forma é envolvida por limites. Ao
romper-se completamente o limite, a forma desaparece, não se é ninguém, não se
é alguém. É-se ninguém. A figura pessoal desapareceu, como mais uma vítima; a
vítima sem remédio.
Donde
vem o fascínio, que tais “ninguém”, que tais “nenhum” exercem sobre as massas,
e o que parece mais estranho, sobre alguns indivíduos as minorias? Pois sem
sofrer um forte fascínioas gentes não se deixariam devorar. Muitas vítimas – é certo
– são-no por total incapacidade de fugir de tão pavoroso destino. Mas há
vítimas voluntárias; os cúmplices, os colaboradores, os que se “prestam” dando
mais do que o que se lhes pede, inventando novos sacrifícios. Trata-se do ponto
em que a condição humana se torna abismal, se afunda num abismo de “não-ser”
uma espécie de suicídio da pior espécie; suicidar-se como pessoa, para
continuar a viver. Trata-se do afã de viver a toda a custa, como se temessem
que viver como ser humano já não era possível e se dispusessem então a
regressar ao escalão mais baixo da escala dos seres.
A
ânsia de viver, mas não é tudo, pois tais cúmplices, instrumentos, correm
embriagados em direcção à morte. Trata-se do fascínio pelo vazio, do nada
subjacente ao “ireis ser como deuses”.
Por
isso é diabólico: porque na promessa de ser, esconde-se a atracção do não-ser;
é ceder, ceder infinitamente, afundar-se na passividade pretendendo ser
absolutamente activo.
Há
momentos decisivos na vida humana em que se comete uma acção, que ainda que
igual às outras em aparência, não pior do que muitas, revela-se irreparável,
mortal. Talvez seja quando a alma se presta a fazer um falso deus de si mesmo ou
de outro. Trata-se do ponto mais tenebroso, em que o absolutismo se torna
diabólico e, portanto, escapa à razão que dificilmente o pode descrever, fixar.
O facto ultrapassa toda a tentativa de análise. Por isso quando se passa revela-se
incrível. E o que se revel incrível pode fazer com que se repita.
Para
compreender a história na sua totalidade, no seu íntimo funcionamento, tem de
se admitir o incrível, tem de se constatar o absurdo e pelo menos registá-lo.
Uma das debilidades do homem europeu dos finais e princípios do século, foi o
não acreditar no absurdo, no horror, no crime gratuito, no diabólico. O ter
esquecido que certas coisas, certos horrores, tinham acontecido entre nós há
não tanto tempo assim, e o não ter suspeitado que podiam acontecer de novo sob
outra máscara, e por outros motivos, pois de certos horrores o importante é que
ocorram. Que o homem e o homem civilizado, tenha sido capaz de os cometer; os
motivos…inventam-se
O
complicado processo do endeusamento e os seus crimes poderão resumir-se que é o
triunfo da destruição. O homem ocidental embriagado pelo afã de criar, talvez
tenha chegado a querer criar a partir do nada, à imagem e semelhança de Deus. E
como isso não é possível precipita-se na vertigem da destruição; destruir e
destruir-se até ao nada, até se afundar no nada."
in PESSOA E DEMOCRACIA - Maria Zambrano
edições Fim de Século, 2003
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