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Adeus, bye-bye.



Um nome só ganha vida se contar uma história. Seja nome de pessoa, seja nome de um lugar. As histórias das pessoas revelam-se no quotidiano partilhado; as dos sítios, contadas pelas gentes que os habitam e calcorreadas por nós. E sendo assim, ganha-se intimidade, e é esse o conhecimento de todas as coisas animadas e inanimadas.

Expulsei-me por vontade, mas não por liberdade, da grande cidade, que chamava minha. Intoxicado pelo caos instalado, o desnorte, e uma horda cada vez mais avassaladora de turistas bárbaros, agarrados e dependentes ao grande circo da especulação e do lucro do consumo de tudo e o mais rápido que puderem, devorando o tempo. Chegam mais rápido à morte, mas pensam que não: pensam que viveram mais.

Saí. Bati com a porta. Virei costas e exprimi o melhor que pude, desfraldando-lhes nas fronhas, o dedo do meio. É verdade, o mais erecto e esticado que consegui. Não sou de asneiras, mas disse-as. Esgotei-as todas, para onde vou não vou precisar delas.

Adeus até mais nunca, a não ser que a velhice e a fragilidade me tragam de volta, deitado. Venho para o campo, ao sabor do acaso. Gostei do nome, vim de visita, encantei-me com a luz que se reflecte nas casas e nas pessoas, e fiz um contracto com o novo lugar. O interior, o centro, uma pequena vila aninhada nos montes que ondulam a toda a volta que a vista capta. E árvores, muitas, imensas, felizmente ainda as há.

Então adeus e passem bem. O cão Darwin e eu, gostamos de conversar em silêncio. Pomos a ampulheta do tempo na horizontal, o tempo não pinga nem para trás nem para a frente, e deixamo-nos ficar, espectadores de primeira fila, boquiabertos e infantis, assistindo ao despedir do sol, ao som da aragem das folhas que lançam no ar perfumes subtis e encantatórios.

E à noite -já nem sabíamos que existiam - os grilos fazem o que lhes compete e bem: estridulam, embalando o nosso adormecer, o meu e o do Darwin, que só desconfiando e não tendo a certeza, também contribuímos com as nossas estridências para o desfiar bucólico das noites no campo.

E amanhã, viçosos e cheios de confiança no futuro, vamos dar um belo de um prolongado passeio, a abrir apetites. É assim o ar do campo.

 

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