Ofereci a minha voz à sua
cegueira. Laboriosamente, não contei os dias, li trechos, livros inteiros, da
sua biblioteca pessoal. Todos os dias à mesma hora, não perdoava atrasos apesar
de o dar a entender de uma forma muito britânica, a chegar a irritante, nesse
polimento que se percebe tão bem que por trás, está um momento fervente de
raiva, nos bastidores de uma figura impávida, a fazer-se desprendida nesse
hábito por vezes tão exasperante de os britânicos se fazerem educados para os
outros.
Era o número seis, habitado por
três humanos, um gato, e todo o universo compactado numa casa a meia luz, que
dava a sensação de ter estado sempre ali, desde o princípio dos tempos, dando
vida e morte e continuidade aquela família. Dona Leonor, mulher velhíssima a
atingir os cem anos, a empregada igualmente velhíssima de toda a vida, uma gata
branca ou preta, não cheguei a saber, e ele, impávido, com o seu fato de bom
corte, escuro, risca de giz, sentado num sofá puído, o seu sofá, as mãos
apoiadas na bengala, e o olhar, vazio de ver coisas, mas como um farol na
esquina mais abrupta de uma falésia a entrar mar adentro, sinal de protecção
aos que andam perdidos e procuram terra firme.
Propunha-me as leituras do dia,
como se tivesse escolha, dando indicações precisas da prateleira onde estava o
livro que queria ouvir. Sabia-os de cor, os livros. Tinha um fascínio que me
pareceu infantil pelas entradas das enciclopédias e quando ouvia alguma coisa
que mais particularmente lhe agradava, pedia que nas margens finais do volume,
se sinalizasse a página e a indicação telegráfica do assunto.
Guardo essas recordações fortes e
desculpo-lhe as fragilidades – todos as temos e não nos damos conta de algumas,
outras não, sabemos bem quem elas são -, apesar de ser um semideus, não deixou
de ser humano e nunca estamos na cabeça dos outros para perceber as suas
escolhas e as suas acções.
Guardo esse seu olhar vazio de ver, apontando o rosto para o alto, como a captar algo que só ele sabe o quê.
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