É uma casa em nada diferente das outras, poucas.
Caiada a branco, as janelas e a porta com molduras amarelas. No espaço da
porta, que em princípio é de madeira, está posta uma cortina de tiras de
plástico de cores esbatidas. Protege dos insectos, também eles indolentes,
subjugados pela intensidade do sol. Dentro, a sala, semi-escura, de paredes
deslavadas, com a sujidade acumulada do tempo e das histórias a que assistiu ou
não. Existe um balcão corrido a toda a largura da sala, em madeira, escurecida
como a falta de luz suficiente que evita este espaço. Duas ou três mesas e
cadeiras em fórmica. Atrás do balcão no que se pode chamar uma prateleira,
copos para servir vinho e outros, pequenos, sinos, de bagaço. Uma máquina de
café, uma peça histórica, já não funciona com certeza. Ainda atras do balcão,
só visível a quem esteja encostado a este, uma pequena mesa forrada com uma
toalha de plástico com flores, um candeeiro com fios de uma teia de aranha, um
caderno com linhas, vazio, um lápis pousado nele. Um vulto vestido de negro, da
cabeça aos pés, presume-se, que não se veem os pés, está encostado à bancada de
madeira. Os olhos, tão negros quanto o resto fixam as tiras de plástico da
porta.
No exterior o calor é obsceno, não há sinais de
vida. O estabelecimento dá para um pequeno largo. Todas as casas da aldeia dão
para o largo. Uma fonte humilde que não jorra água, bancos de madeira corrida, pequeno
jardim irrepreensível e belo. As flores são viçosas e os arbustos de verdes
frescos e vividos. Num dos lados do quadrado que faz o desenho desta praceta,
há uma estação dos caminhos-de-ferro. As estações de caminhos-de-ferro estão
forradas a azulejos azuis, com motivos, paisagens bucólicas. Uma sala de estar,
aberta, com bancos corridos e uma moldura em vidro e madeira, a bilheteira,
fechada. Cá fora, na plataforma, um relógio de ferro pendurado, marca as horas
certas. O sol na plataforma incide durante todo o dia. Um cão, enorme todo
branco menos a cabeça rude que é cinzenta, dorme profundamente ruidoso e ronco.
Não passam comboios. Anos.
Antes do momento do lusco-fusco, todos os dias
marcados por esse episódio que culmina os dias em cheio, o homem sai de casa e
dirige-se ao estabelecimento. A mulher de negro já colocou um copo de vinho na
mesa onde ele sempre se senta. O homem bebe com vagares, pousados os olhos na
imobilidade das tiras de plástico. A mulher que sofre das costas, arrasta-se
com dor para o ponto exacto do balcão de madeira onde se presume que passou
todo o dia estacionada a olhar para a porta, e volta a fazê-lo, restabelecendo
a harmonia.
Fecha-se a porta da sala de espera da estação
dos comboios, deserta. O cão, dirige-se para a casa dos livros, onde sabe que
há comida e onde pode continuar a dormir. O guardião da última das bibliotecas,
vai continuar a ler e a tentar decifrar a grande charada. A mulher,reza durante
toda a noite, nessa, nas outras que já foram, nas que tem ainda, para que o
tempo passe depressa e nasça o novo dia, é velha e continua a ter medo da noite.
Ela desconhece o valor dos livros, o que dizem aquelas folhas, se o soubesse
não seria uma notícia importante. O que ela sempre quis foi levar o pequeno
negócio em frente, um pé-de-meia para pagar o funeral. Nunca aprendeu a ler,
nunca saiu dos limites das quatro paredes enxovalhadas, com duas mesas e umas
tantas cadeiras. Teve momentos na vida em que lhe apeteceu partir. Um dia
fechou a porta de casa, pôs a cortinas de tiras para dentro, entrou na estação
dos caminhos-de-ferro, sentou-se e esperou. Nenhum comboio apitou nem ao longe
nem ao perto. Voltou para casa cansada.
Ainda assim tinha feito uma pequena viagem.
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