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PALAVRAS CRUZADAS






Ela emana de si uma concentração total no que está a fazer. Pode-se mesmo dizer que vive para isso (não em estado permanente de concentração que ninguém aguenta). E quando se vive para uma coisa, dá-se o melhor, já que se canaliza a força da vontade para a realização desse amor. Ela é um bom exemplo.

 O que faz é muito sério, chama ao silêncio, pratica uma actividade cerebral, não abre mão de ruídos nefastos, um burburinho que seja. Só que ela, esta senhora, tratemo-la como se manda, vive uma contradição: se por um lado tem de dar o seu melhor, no que faz e gosta, por outro, para o fazer, necessita da companhia dos outros. Só que o que faz e a companhia parecem ser incompatíveis.

Ela não consegue estar sozinha, mesmo passando como passa dias corridos inteiros, rodeada de pessoas, não falando com ninguém e ninguém com ela, e ainda que falassem, ela mantém-se tecnicamente em estado de solidão.

 Neste momento apresenta-se o problema, que é nosso, porque somos nós que por uma razão ou nenhuma, demos de caras com esta situação, melhor dizendo, mulher, e desabridamente começámos a congeminar sobre a estranheza do seu aspecto, o que é sempre passível de crítica, já que não se deve concluir nada só pelo revestimento exterior de um corpo, e chegamos mesmo à conclusão, sabe-se lá onde a fomos desencantar, que ela vive o estado solitário.

 Como conciliar os opostos? Desconhecemos a resposta, até porque estamos a fazer conjecturas - que podem muito bem ser todas falsas - sobre uma mulher tão esguia que quase desaparece na dimensão do real.

Indo alongado o preâmbulo, era de simpatia saber no que esta mulher aplica a sua energia da concentração absoluta no caminho do amor.
Pois a preencher todos os quadrados vazios de letras que fazem todas as palavras cruzadas que ela consegue descobrir por preencher. É o que esta agora a fazer, sentada num banco de jardim (disso estamos certos já que passamos propositadamente duas vezes por ela, uma para cá, outra para lá, para confirmar o que a absorvia tanto).

Há feira e o jardim não é o local mais tranquilo da cidade, neste dia em particular, já que tem um circo de pequenas tendas brancas montadas, onde pululam vendedores expectantes de fazerem bons negócios, e turistas que por aí circulam, como cirandam por todas as zonas da cidade: não têm mais nada para fazer senão locomoverem-se e tirar o maior número de fotografias que a memória do telemóvel permita, para chegados a casa, esgotados de tanto terem andado, esquecerem-se rapidamente das fotografias que tiraram nessa cidade, mais ou menos bonita, consoante gostos e preferências pessoais.

É este, o jardim, um local impróprio para actividades que peçam a intimidade do silêncio, nem sequer pássaros piam, mudam temporariamente de pouso nos dias de feira. Mas ela está ali, porque precisa de companhia para a sua solidão e é tão boa a preencher os quadrados das palavras cruzadas, que a confusão não lhe vai afectar o resultado final. Dir-se-ia mesmo que ela é uma verdadeira  e bem sucedida executante do preenchimento integral de palavras cruzadas. Foi professora de português, mas isso não o sabemos nem nunca o saberemos, somos desconhecidos uma do outro, o observador nem se sabe que exista ou se inventado e não se espera que haja apresentação.


Inicia-se neste preciso instante uma de milhões de milhões de conversas iniciadas no mesmo instante, em todas as localizações no mundo, onde bastam duas pessoas, para se iniciar a conversa que eles têm que ter, ou que é inútil, mas têm-na na mesma. Esta, mais em estilo monólogo, com um balcão de mármore de um café-pastelaria, a dividir os intervenientes. Pastelaria da Santa, em frente, e do outro lado da rua do jardim, a dar de caras com as barracas em tecido poliéster impermeável branco.

No lado dos clientes, o discursante, homem jovem, desarranjado dos dentes, toma um Favaios. No lado do balconista, homem entrado, completamente careca, com grandes probabilidades de ser o dono do estabelecimento:

«Tenho o meu pai numa gaveta do Alto de São João, que é minha. Eles agora ameaçam expulsá-lo se não pagar uma taxa de ocupação.
A gaveta é minha!
O meu pai não se queixa.»

O empresário, não muge.

«Havia de ser lindo, onde isto já chegou, expulsar-se uma pessoa da sua própria casa? Ainda por cima  morta?

Chegam entretanto umas estrangeiras (são loiras) e o proprietário do café apressa-se a servi-las para não ter de responder ao outro. Esta atitude indicia que se conhecem e este não terá a melhor das paciências para as conversas do outro.

Uma pede uma bifana no pão (não sabe o que é bifana: é uma tradução muito liberal para inglês, que se apresenta, com fotografia, no painel por cima da bancada, que ela aponta) e um galão clarinho (clarinho, é o entendimento que o balconista tem do tipo de meia de leite que uma estrangeira deve gostar. Ela não o pediu dessa maneira). A sua companheira, presume-se que sejam amigas, pede um pastel de nata e uma imperial (neste caso explicou o que pretendia consumir por gestos, pressionando um imaginário manipulo com uma mão no ar a verter uma suposição de líquido amarelo com gases para a outra mão a imitar a forma de um copo). O senhor do estabelecimento é muito bom a adivinhar mimicas.

«Eles que fossem falar com o meu pai.»
«Fui eu que comprei a gaveta, mas para todos os efeitos aquilo é dele. »
«É lá que ele vive, ou seja, deixa-se estar como está. Mal pensei nisto lembrei-me que ele estava morto.»
«Fervi tanto com esta história, que fui lá tomar-me de razões com um dos coveiros, o primeiro que me apareceu»
«Fui na abertura do cemitério, ainda estava praticamente vazio, à excepção dos residentes, e acabei por encontrar, só pela cabeça (a única parte do corpo que percebi à distância), o coveiro que estava a terminar de cavar uma cova, já bastante decente, para o primeiro morto da manhã.»
«Disse-lhe das boas, e o gajo não faz mais nada, apanha-me distraído no vernáculo que lhe estava a atirar aos cornos, e sem me dar conta, num ápice, salta para fora, e atira-me ele, a mim, lá para dentro.»
«Como sou curto de pernas e braços, fiquei soterrado a céu aberto, sem possibilidade de ser visto, só ouvido, já que nem esticado conseguia sequer ultrapassar com a ponta dos dedos a linha de separação da terra do espaço gasoso, o ar, acima dela.»
«O gajo, deixou-me sozinho, a falar com os mortos e como não estava mais ninguém, fartei-me de berrar, até que uma pobre senhora, toda de negro, e com uma jarra de flores de plástico na mão, se abeirou, assustadiça por julgar estar a assistir à gritaria de um defunto, numa campa. Ela benzendo-se, eu lá a consegui convencer que não era um fenecido recente e ela foi por ajuda, que ainda tardou uma meia boa hora.»

Tendo aviado as estrangeiras e não havendo no momento mais ninguém para atender, o proprietário do café viu-se na obrigação de responder. Fê-lo entredentes, a contragosto.

«Se os turistas que estão vivos pagam uma taxa de circulação por cada dia que passam cá, porque não devem pagar os moradores fixos uma taxa de habitação? o país não tem recursos. A nossa única riqueza são os impostos criativos.»

O falho de dentes no maxilar superior, desalentado com esta resposta, carente de solidariedade humana, saiu muitíssimo cabisbaixo, e foi-se desiludir ainda mais da espécie humana, num banco indiferenciado do jardim em frente.


A feira do jardim é semanal e praticamente todos os intervenientes se conhecem: os feirantes, os jardineiros do jardim, as raparigas do quiosque no perímetro do mesmo, os transeuntes habituais, fregueses da cidade, autóctones. Quem não se conhece são os turistas que por ali passam, não para comprar, mas indo em direcção de algum local inespecífico que não sabem qual, nem onde, e porquê. Simplesmente vão. É uma feira difícil de qualificar. Dir-se-ia sem identidade. Mais uma, com produtos praticamente iguais a outras feiras, espalhadas pela cidade.

O filho do que se passou para o outro lado, estava ali a cortar os pulsos de uma forma metafórica, quando reparou na existência de um ser fragilíssimo quase invisível de tão magro e esguio, que se achava encurvado absorto numa folha de papel pousada na perna cruzada. Acabou de descobrir a existência da mulher solitária que faz palavras cruzadas como missão e forma gratificante e espiritual de dar um sentido à sua vida na terra.

Por uma sincronia insondável do determinismo a que se chama fado,ela levanta os olhos da folha para pausar da focagem da visão, e repara igualmente no jovem homem quase tão fino como ela, que lhe parece ter um ar pré-suicidário, isto tendo em conta que ela também preza bastante uma certa visão metafórica das coisas.

Algures a meio caminho percorrido dos dois a olharem-se, estabelece-se a ligação do encontro. Aquele momento único, que só acontece uma vez e a alguns nem uma, onde duas almas quase penadas, reconhecem a sua metade em falta.

Ela levanta-se e deita no caixote do lixo o papel das palavras cruzadas. Ele abandona as suas quase decisões metafóricas irrevogáveis, poe-se de pé ajeitando as calças e dando com a mão direita uma compostura rápida no cabelo.

Abraçam-se ambos, no meio geodésico do jardim da feira, e fundem-se desaparecendo.

Aqueles feirantes não devem vender nada, deve haver por ali uma grande quantidade de gente precisada de companhia. Pelo menos um interesse, que lhes ocupe o tempo.

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