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INDO EU, INDO EU...






De cá, para lá, é mais escuro.
Ele não olha, portanto não vê. Não olha pela janela do carro a altíssima velocidade. Vai absorto, urdindo discursos, pouco mais faz do que discursos e nem isso: cola as partes que lhe enviam os assessores. A sua eficácia realiza-se num bom discurso, e nada mais, esgota-se nisso a função.
São duzentos e cinquenta quilómetros de estrada boa, nelas fez-se fartura. No que escasseia, sempre a somar e a escassear mais e mais, são as árvores. Clareiras cada vez maiores, de ramos incinerados, a lembrar cruzes de cemitério. No chão amarelento, a secura, o anúncio de desertos. Poucos verdes restam, e dos novos, são eucaliptos. Não se aprende, não porque não se queira. Tudo é propositado, ou desleixo absoluto.
Do mar à fronteira é um instante, a pagar portagens privadas, a pagar para se ir visitar o quase nada, ou então (a poder-se), a fugir de nós próprios: entrincheirados na apatia, nos embalos dos demagogos, fazedores de ricos discursos gongóricos, mas vácuos, a vivermos uma vida que  leva a nada (são todas assim), mas aqui torna-se insuportável: tanta tristeza suave acumulada na aceitação de destinos que outros nos traçam em conluios, repartindo as migalhas dos bolos entre si.
O político vai chegar ao seu destino do dia, cumprimentar os seus correligionários que viajaram todos, de Lisboa, de propósito para o receberem, para ele não ficar sozinho, ali, no beiral, num belvedere qualquer que deixou agora de ser, a olhar vagamente para um manto de colinas e vales, antes vivos a verde, agora, ofegantes em labaredas quentes e destruidoras.
Depois desse olhar oblíquo, fará os discursos, para os correligionários, os autarcas, obrigados a marcarem presença a seu lado, os meios de comunicação, mal preparados, não sabem fazer as perguntas certas, ou não podem, e meia dúzia de basbaques: o povo - povo é basbaque em todas as condições – que não se pode aproximar dos senhores, e que pudesse, não sabiam o que lhes dizer, na emoção de terem perdido as suas riquezas, a terra e o que nela floresce.
Merda de gente que nos manda esta, grandes paspalhões nós.
De lá, para cá, no final do dia, quanto o sol se vai pondo e criando sombras e raios de luz enviesados, ele, viaja agora de costas, a deixar o vazio para trás. Por isso mesmo: o que está para trás das costas, não se vê, ele não olha e não percebe nada. A terra sem conteúdos é um espaço sem utilidade e não serve aos seus interesses.
No carro que viaja a alta velocidade por uma estrada que é um tapete, apitando aqui e ali sinais que indicam os sensores de uma estrada pública com gestão privada, ele vai muito absorto, por ser um profissional.
Continua a urdir novos discursos, para amanhã, ou depois, ouvindo e colando como suas as palavras sábias e avisadas dos seus assessores, afinal, os seus verdadeiros olhos.
Atingimos todas as metas, estamos florescentes, nos mais belos gráficos e nas estatísticas certinhas e infalíveis.
De flores, é o que se não vê.

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