O Avô gostava muito da sua prima e tanto a apreciava, que a
tinha acolhido no seio da família, oferecendo-lhe um tecto-casa seguro para se
proteger das intempéries de uma vida madrasta que a levou a ser mãe solteira de
um filho, o Augustinho, rapaz franzino, pouco animado.
Ele era visita frequente do pátio. Vinha com a avó, não a dele
que não tinha, a do António, mulher de um coração tão generoso que conseguia
convencer-se a si mesma que o mundo era de uma tonalidade perto do cor-de-rosa
inofensivo. Enquanto isto - estas visitas aos netos, dois - o avô e a prima estariam não se sabe onde,
cada um por si ou juntos, entretidos com alguma coisa ou não.
Gostavam-se muito, ele era um filantropo, ela uma agradecida.
O Augustinho como era de alguma forma fraco, dava-se ao
aproveitamento e as crianças do prédio utilizavam-no impiedosamente.
Instrumentalizavam-no se é correcto dizer-se – que ele se sentia isso muitas
vezes é correctíssimo.
Era o tempo, aquele, em que as estações do ano, como de tudo o
mais, da natureza ou do homem, cumpria com a palavra dada. O Inverno era
chuvoso e macambúzio, a Primavera esperançosa e florescente, o Verão caloroso e
quedo, o Outono nostálgico e acobreado. Estava tudo no seu lugar, o que podendo
ser monótono, não deixava de ser tranquilizador, como por exemplo ir-se de férias sem ter que transportar um guarda-chuva, no Verão claro.
Como se sabe dos relatos anteriores, e minuciosamente
descrito, à frente do pátio existe um grande descampado de ervas daninhas e
outras. Dizer outras é dar a possibilidade de poderem co-existir no meio da
ruindade das ervas, umas tantas, de bom carácter, que estavam misturadas. As
daninhas, crescem com uma grande rapidez e polinizam muito. Sendo ervas está na sua essência secarem
rapidamente e desta forma basta um motivo menor para virem a arder, não se
poupam a um bom pretexto.
Todos os verões deflagravam pequenos incêndios nesse matagal e
lá iam os bombeiros apagar. Como as comunicações não eram o que são hoje e
entre o telefonar, a menina do PBX colocar a cavilha da linha na entrada
certa, e haver resposta do outro lado, acrescentando a isso a profissão de
bombeiro ser voluntária, a sirene tocar a chamá-los aos empregos, eles
chegarem, vestirem-se e porem-se a caminho, tudo isto, só de o dizer cansa, imagine-se
o atraso que ganha, a chegar ao local da
ocorrência.
Quando chegavam já havia um grande fogo, ou então porque eram
ervas sem outros pergaminhos, ele já estava na fase de quase rescaldo. Neste
caso era chegar e andar, mas prejudicava o espectáculo da criançada. No primeiro
caso era uma grande sorte – salvo seja - ou seja: eles demoravam mais tempo, vinham
mais bombeiros, e as crianças fruíam de uma excitante aventura prolongada em
tempo.
Tudo isto, estes volteios todos, para trazer à conversa a
razão por que o Augustinho, entre outras, era tíbio.
Os rapazes residentes (as raparigas são mais sensatas e brincam
com coisas mais sensatas) consideraram que dados os atrasos constantes dos
bombeiros chegarem ao local, seria bom haver um posto avançado no próprio.
Os homens adultos trabalham durante o dia, ausentes, as
mulheres adultas não ligam a estas coisas, não resta mais ninguém: o corpo de
intervenção rápida tem que ser constituído por crianças, os que estão
disponíveis.
Um bombeiro não se faz de um dia para outro, é necessária
formação, treino, e acima de tudo amor, que é o ingrediente de uma vida bem
temperada (elementar lugar comum, que envergonha escrever, mas um folhetim para
ser popular tem que conter aqui e ali um salpico de frases assim a roçarem o
primário).
Decidiu-se na Ágora a criação de um corpo de
voluntários e para começar bem perdeu-se logo uma semana para eleger os corpos
directivos, a velha história que já vem de outros episódios. Todos querem
mandar e ninguém gosta de ser raso.
Como o António e o Salvador saíram fragilizados da história da
radio, não se chegaram à frente. O comandante nomeado foi o Quincas,
diminutivo-alcunha do irmão mais novo do Pedro, um estouvado para não afirmar
com propriedade que era totalmente despirolitado
da cabeça.
Nessa época o Xico da mercearia onde todos se aviavam vendia o
vinagre em garrafas de plástico mole com um gargalo que se cortava com
tesoura. Ao apertar a garrafa, esta espichava, o que não era muito prático para
os desatentos ou que não mediam a força preênsil das suas mãos pessoais.
Como todos eram clientes do Xico e tinham dessas garrafas em
casa, logo se concluiu que dispunham de um acervo de extintores suficiente para
as primeiras necessidades. E foi por aí que começou a formação especializada:
dias e dias a borrifarem-se de água, uns atrás dos outros, uns a fugir dos
outros, as meninas a serem massacradas, os gritos das empregadas, sempre das
janelas. Camisolas molhadas, saias molhadas, calções molhados, meias e sapatilhas
molhados. Se tudo se molhava para quê repeti-lo tantas vezes? O estilo.
O único problema para o qual não se encontrou uma solução
prática era os depósitos das garrafas não ultrapassarem o litro de capacidade
de líquido, o que quer dizer que uma borrifadela mais enérgica esgotava
imediatamente a capacidade de ataque à linha de fogo. E para se fazer uma
recarga, a retaguarda devia dispor de um recipiente – podia ser alguidar –
suficientemente grande para se poderem mergulhar vários extintores ao mesmo
tempo. Foi o que se fez.
Completa esta formação em incêndios, a profissão mesmo que
voluntária, de bombeiro, tem outras valências. Por exemplo transporte de
feridos. Fácil: dois paus fortes, uma lona e está feito. O treino não é
necessário, basta sincronizar o passo do bombeiro de trás com o da frente, e
levantarem os dois o ferido ao mesmo tempo, para este não vir a resvalar numa
situação de saúde ainda pior.
Outra era o resgate em altura, coisa séria. E explica-se: não
ter vertigens, ter cordas, ser possuidor de um conjunto de técnicas delicadas
para içar e desiçar.
A corda é um material com muitas categorias e importâncias. Vai
desde o fio de coser o botão – e ainda há mais humildes – até ao cordame que mantém
um navio de grandes dimensões sossegado quando aporta a bom porto.
O Xico, grande Xico, o da mercearia, vendia de tudo e até
cordas. Não para navios que se estava terra adentro, mas das categorias intermédias
tinha o seu aprovisionamento.
E foi ele o fornecedor. Durante semanas, as poupanças
financeiras de cada um foram investidas na compra de corda.
A solução era
simples e bem pensada e foi tirada da observação atenta do cabelo das meninas. Mais propriamente das
tranças. Se se usar a mesma técnica e entrançar várias cordas, obtêm-se uma
capazmente forte para aguentar o corpo de um bombeiro, dos pequenos que eles
eram. Assim se vez. Conseguiram-se uns vinte metros.
Testar a corda pedia uma oportunidade, uma conjugação de
factores. Um voluntário para ser içado, um número suficiente de içadores, e uma hora morta, ou seja, em
que nas casas os ocupantes andem distraídos e tenham esquecido momentaneamente
as suas crianças que brincam no pátio.
Era o Augustinho, não havia outro.
Ele não queria aceitar, mas ou dizia que sim, ou perderia uma
oportunidade se calhar única de ser reconhecido e aceite definitivamente no
grupo do pátio, coisa que nunca seria mas dizia-se-lhe que sim e ele tinha
esperança.
Também não era nada de outro mundo, era uma experimentação simples. O prédio
como já foi contado era em “L” e a unir interiormente as duas partes tinha
corredores de ligação entre cada andar e uma escada a meio dos corredores, debaixo
a cima.
A equipa dos que iam içar o escanzelado que não tinha culpa
nenhuma de ser o filho da mãe, posicionavam-se no corredor do primeiro andar,
sentados e encostados numa parede do corredor com os pés a fazerem de âncora na
outra parede do corredor. O Augustinho estava preso pela cintura, com nós bem
dados e suficientes. Um deles ficava encostado ao muro do corredor que dava
para o pátio, a orientar os que puxavam e para dar uma mão ao mártir, quando
este chegasse ao fim. Se tudo corresse bem, passariam do primeiro para o
segundo andar e assim sucessivamente, que era só mais um.
O Augustinho estava
nervoso, mas isso também não queria dizer nada, o sacana do lombrigas, passava
a vida nervoso. estava sempre em recaída.
Aguentaram o que puderam. Está documentado na memória. As forças
foram levadas ao limite, as mãos a cederem, a corda a querer escapar-lhes, a
levar a pele, as dores. Puxavam, puxaram e nunca mais lhe viam o cocuruto da
cabeça de passarinho que era a sua. Mas ouviam-no gemer, e depois guinchar e
por fim relinchar, que não sendo equídeo, eram gritos que pareciam de um
desses.
O Augustinho ficou com a cabeça presa no tabuleiro do corredor
e rodopiava, e mais uma vez, e eles porque estavam a ser mal orientados pelo catrapisqueiro de Jonas que em vez de ser os olhos deles e dar as
coordenadas, se distraía com a Filipa, aluna da Dona Elvira, que ao contrário da maioria quase absoluta das
suas colegas, e sem que se soubesse porquê, tinha já com aquela idade tão precoce, um
portentoso par de peitinhos vivazes a quererem anunciar um futuro glorioso.
Esteve meses sem aparecer, o ingrato.
Ainda a tarde vai a meio tanta coisa está para acontecer e não
se sabe do paradeiro do avô e da prima. Diz-se que fugiram, mas à boca fechada,
o que é dizer que se pode dizer, mas não se ouve. Daí a tirar conclusões, são
conjecturas e é uma história que não ata nem desata para a felicidade da
criançada que de novo em algazarra, esquece a dura profissão de bombeiro e vai
iniciar um campeonato por eliminatórias de toca e foge.
Antes disso tem que se falar da Teresa e a fantástica descoberta dos efeitos mirabolantes das hormonas que destapam os prazeres da sensualidade.
Comentários
Enviar um comentário