Sentados em fila no banco corrido da paragem de autocarro, todos
rodam a cabeça ao mesmo tempo, repetem o movimento: para um lado, para o outro.
Varrem o campo de visão imbuídos numa pequena ansiedade. Imitam os bonecos de
plástico que se vendem nas lojas dos chineses – quando se compram fazem-se vaticínios
para quando vão deixar de funcionar. Alguns duram muito, é como as pessoas.
Quem vê ao longe os que ocupam esse banco incómodo na paragem desagradável
da noite, imagina-os silenciosos, congelados na posição de sentados. A pista de
que existe naquele cenário um sinal de vida adivinhável, que não é uma
instalação artística de ambiente urbano, hiper-realista, é poder-se comprovar a
realidade de uma linha de olhos alinhados pestanejantes, que vasculham a
chegada da carrinha das sandes.
Os proprietários dos olhos que são assinalados neste banco,
todas as noites, à mesma hora, os mesmos e às vezes alguns mais, são um bando
de putos traquinas fingidos de bem comportados. Recebem um doce se aguentarem
dez minutos sem asneirarem. São crescidos de mais para continuarem a serem miúdos,
mas pararam o tempo, e quando os voluntários se forem embora, e deixarem de ser
o motivo das atenções, voltam às coisas de que se ocupam os miúdos:
brincadeiras.
Estão desdentados: a mãe absolutamente redonda, a descair
gorduras e o filho, talvez trinta anos, com um atraso. Dois deles são carecas.
Um é careca com lentes grossas, garrafais, vê muito mal. O outro é careca e
sofre dos pés, tem os sapatos recortados para tirar a pressão a ossos que
ramificam para o sítio errado da anatomia. O terceiro, não se sabe porque vai
de boné de pala, à noite o sol não encadeia os olhos. Tem uma colecção deles, todos
os dias um diferente. É o único que não se senta, parece ter os outros debaixo
do seu domínio, bom falador, engalanado de peito, o que intriga o observador.
Não veste bem mas escolhe as conjugações. Alguém que conheça a história deste
homem? O voyeur desassossega por não
saber as histórias verdadeiras dos seus personagens, por isso inventa-as.
Quando a carrinha das sandes estaciona e se abrem as portas traseiras
para o serviço de caridade da noite, o grupo dos falsos mudos muda para a
posição de caloroso e barulhento. Querem à força e muitos, distribuir beijos e
abraços apertados. Alguns voluntários não estão à vontade, fingem que gostam e
alinham, contrafeitos mas caritativos. O banho e um sabonete perfumado no final
da noite operam milagres nos odores que se entranham. O cheiro a pobre é um
cheiro a azedo, irritante, leva tempo a desaparecer.
Este é sem dúvida o grupo mais animado da noite. Falam uns por
cima dos outros, na repetição da mesma conversa, sempre a mesma, que pega com a
da semana anterior. Mesmo no desabrigo se encontra felicidade, ou o seu
fingimento, esta maralha não se lamenta.
Todos reclamam atenção, ri-se alto, tiram-se fotografias com
telemóveis, combinam-se jantares solidários.
A mãe sem dentes, já enfiou três copos de leite e sente-se
animada a enfiar mais. Pediu dose dupla de sandes para o pequeno-almoço do dia
seguinte. O filho tem o atraso de não saber onde está nem qual a sua geo-referenciação
no mundo. Esse mal não é só dele, se fosse por não se saber o lugar que se
ocupa no mundo, não havia necessidade da rosa-dos-ventos.
Os carecas e o do boné, faladores de cotovelo – seja porque são
mesmo assim, ou porque não têm com quem falar, descarregam todas as palavras da
jornada, concentradas, naqueles dez minutos de atenção alheia - não estão ali
pelo aconchego lácteo, mas para se distraírem, queimarem tempo, virarem mais
uma data.
As noites ao relento - por muito bonito que seja o luar, não
deixa de ser uma imagem romântica de quem vai para casa dormir numa cama com
molas e quente – são noites enormes, nunca mais se vê a luz do dia, sem sonhos
porque não se consegue dormir, e desperto não se sonha adequadamente, na
atenção aos perigos, ou em contabilidades enredadas com as estrelas.
De vez em quando a harmonia do grupo, porque se pode dizer
assim, é interrompida por alguém que se aproxima para reclamar o saco, com sons
inexprimíveis, tremendo muito, alucinando talvez, escravo de venenos que se
calculam destruidores, mas não se imaginam os efeitos.
São fantasmas que vão e vêm, entram e saem de cena, deixam pouca
memória, que lhes perde o rasto dos rostos, desfigurados, de rugas profundas,
vincadas, caras escondidas, encapuzados, protegendo-se da luz ou do olhar dos
outros.
Cumpriu-se mais uma escala, fecham-se as portas da carrinha, o
interruptor volta à posição de silêncio, os voluntários respiram fundo no
conforto interior, ao som da balada dengosa do momento a tocar na estação de
radio – esta música vai-se ouvir milhares de vezes nos próximos dias, e a
seguir outra igualmente banal virá tirar-lhe o lugar e ter o mesmo destino da
anterior, embalar uma carrinha que circula algures na noite da cidade dos
homens.
Há quem desinfecte as mãos.
Lá fora, do outro lado da linha de bem-estar, o grupo vira
costas. Separam-se, afastam-se, caminham agora, talvez para lado nenhum, ou de
regresso às suas casas de cartão, sem portas nem chaves, construídas num
esconso qualquer, no abrigo provisório de um viés de prédio. Falta-lhes uma
caixa de correio e um número, assim não recebem correspondência.
Quando as portas da carrinha se fecham a
vida destas pessoas volta ao modo “suspenso”, até à próxima visita. Durante e
depois disso são anónimos, vêm à memória, vagamente, distantemente, num distanciamento
sem contornos definidos, e logo são esquecidas. Ninguém aguenta muito tempo a
fazer malabarismos mentais sobre a miséria humana e à luz das horas do dia há
outros assuntos que ocupam a cabeça.
Na próxima semana, mais ou menos ao bater da meia-noite, uma
linha de olhos curiosos procurará numa rua a descer a carrinha do aconchego e
ela chegará, mais ou menos atrasada - devia ter vindo quando ainda era tempo -
mas disso ninguém tem culpa, faz parte da história privada dessas pessoas, não
tem alterações.
Na próxima semana todos os intervenientes executarão os mesmos
rituais e assim está bem, para a manutenção da harmonia das coisas, uma pequena
função para cada um, um pequeno papel, juntando folhas aos in-folio da história
do universo. Se não faltar nenhum dos actores principais, é um bom sinal. Dos
que não têm rosto, são possíveis ausências, não se dará nota. São seres
espectrais que passam entre nós gerando brisas frias, ligeiramente
desconfortáveis, mas que se esfumam rapidamente.
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