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AVENIDA USHUAIA, 5º ANDAR SEM ELEVADOR




Morena, tronchuda (esta palavra não estava no anúncio mas apetece dizer), muito meiga, esperando você.”, “Relaxamento completo, profissional viajada por esse mundo fora, pode escolher do menu.”, “Tamanhos grandes, desinibida, me chame gatão.”

Folheia o jornal aborrecidamente e tem um dejá vu de muitos anos já passados. Está a ler um jornal, na secção dos anúncios e fantasia sobre as ofertas de sexo, muito veladas ainda, um mundo ainda por iniciar.

Antes, eram mais contidos os anúncios, como tudo. Tinha acabado recentemente o tempo da censura, mas persistia uma moral bafienta e mole, colada às pessoas, esse horroroso sentimento de culpa – o pecado dos laicos – uma polícia dos costumes que continuava no activo.
  
Voltou à realidade, foi uma fracção de segundo. Fotografias pequeníssimas mas apetitosas, tudo à mostra, corpos de mulheres e homens com atributos apreciáveis, levando a imaginação a antever os não visíveis atributos potencialmente apreciáveis. As mensagens estão limitadas ao slogan que promove o produto e aos contactos. Estamos na era da imagem, do imediato. A palavra atrasa a correria histérica para lado nenhum, cansa o pensamento, não há tempo para palavras.

O que começou por ser um desfolhar meio entediado das páginas de um jornal na sala de espera dos clientes do seu escritório, finalmente vazio e silencioso a esta hora de final do dia em que se fez dinheiro, tomou-lhe o interesse quando se lembrou – caído do nada, como caem a maior parte dos pensamentos – que se sentia particularmente cansado do gato que não interagia, do filho que só asneira e nunca mais cresce decentemente para se fazer à vida, da esposa formalíssima, que apesar de boas famílias, não olha para ele há anos, a não ser para referir a uma nódoa ínfima na gravata de seda, à saída de um jantar com amigos, dizendo-o numa mistura de spleen britânico, e ódio ribatejano, se é que se entende esta imagem.

Por estas razões, todas a partilharem o primeiro lugar na hierarquia da infelicidade, ele acha-se no direito legítimo de se oferecer um mimo.

Acende um cigarro - não está ninguém para o impedir e o escritório é seu. Desaperta o nó que o espartilha e escolhe.

“Beldade das estepes geladas, fogosa como uma índia dos trópicos”

“É esta, elas não anunciam assim. Há poesia e mistério neste anúncio.”

Av. Ushuaia, porta em frente centrada com a estátua, a caminho, logo se dará uma desculpa por chegar atrasado ao jantar.

Não estava longe mas aquela hora enervou-se com os idiotas que não deviam conduzir e andam nas ruas para ocupar espaço e tirar a paz de espírito aos outros.

Também não foi fácil estacionar, missa das sete na Igreja de Nossa Senhora dos Necessitados. Se se cruzar com a tia Rosa, que vai sempre à missa das sete, terá que a despachar num golpe de génio, ou vai ter que lhe contar o que fez desde que acordou, com pormenor e vírgula.

“É aqui. Bonito prédio. Tocar quatro vezes como combinado por telefone. Cá vou eu.”

Cinco andares sem elevador. Cento e cinquenta e um degraus (vá-se se lá saber porque deu número ímpar). A vontade era tanta que foi bem até ao segundo andar. A partir daí (lembra-se bem que era o segundo andar porque a porta tinha um tapete com dois ursos abraçados ao número 2) foi ficando sem oxigénio, enquanto ia contando os degraus, até perder a conta. A lucidez cada vez mais turva, tão turva que levou uma eternidade distinguir a campainha e tocar.

Foi atenciosamente recebido por uma senhora (seriam duas?) e um refrescante copo de água, que não melhorou em nada o cansaço terminal. Disfarçou e tentou manter a compostura.

Sentaram-no numa poltrona numa sala com um Buda dourado enorme e gordo como sempre representam Buda, e uns pauzinhos de incenso, um cheirete intenso, a debitar para o ar já de si escasso, odores da India ou do Paquistão, ou a ideia que se tem do que seja um cheiro genuíno nessas partes do mundo.

Toda a sala balouçava escandalosamente. Com o olhar e o entendimento desfocados, acabou por escolher a que lhe pareceu ser a beldade das estepes geladas, uma simpatiquíssima morena que lhe foi dando palmadinhas na mão e não parava de soprar no seu rosto, que estava cada vez mais azulado, sem se dar conta disso. As outras meninas nem se mexeram, mal olharam para ele – elas é que eram as putas e ele é que tinha a peçonha! Foi por esta simples atitude solidária que ele escolheu a morena da tundra siberiana.

Mulher magnífica! Espécime rebelde!

Foi a melhor massagem da sua vida!

De tal forma boa, a massagem, que se deu conta do espírito a flutuar no algures, às alturas do tecto do quarto, observando-se a si mesmo, fora do corpo, repousado e inerte na marquesa, todo besuntado de óleo de coco e amêndoas doces de um país da bacia mediterrânica. Ela, a morena rebelde e meiga, carinhosa em geral como são as gueixas siberianas, profissionalíssima, para cima, para baixo, reanimando toda a sua musculatura. Aquelas mãos milagreiras, sabiam de cor todo o dicionário de músculos do corpo de um homem.

Neste preciso momento ela desnuda e em pose muito sensual, sussurra-lhe ao ouvido não se sabe que cicios, não ele não a ouve, ausentou-se do seu corpo. Será um sono hipnótico? Atingiu um nível de relaxamento género místico oriental?

Foi uma excelente decisão ter vindo, valeu a escolha e o preço.

Daqui já não se mexe mais, não vai sair pelo seu pé da marquesa, e a morena que o continua a massajar, tão absorta no seu trabalho, até que se canse e perceba que se o chamar ele não lhe vai responder, vai ter uma bela de uma surpresa, quando discorrer que está e massajar um morto acontecido recentemente.
É certo que está habituada a ter poucas reacções de sucesso imediato nos homens daquela idade, mas como é zelosa não desiste ao primeiro insucesso.


Vai ser o cabo dos trabalhos para o tirarem daqui. Que história irá contar a sua formalíssima esposa à tia Rosa, quando esta no velório se aproximar da urna e vir que o defunto fenecido está de lado. Porque raio o puseram assim? 

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