“Morena, tronchuda (esta
palavra não estava no anúncio mas apetece dizer), muito meiga, esperando você.”,
“Relaxamento completo, profissional viajada por esse mundo fora, pode escolher
do menu.”, “Tamanhos grandes, desinibida, me chame gatão.”
Folheia o jornal aborrecidamente e tem um dejá vu de muitos anos já passados. Está a ler um jornal, na secção
dos anúncios e fantasia sobre as ofertas de sexo, muito veladas ainda, um mundo
ainda por iniciar.
Antes, eram mais contidos os anúncios, como tudo. Tinha
acabado recentemente o tempo da censura, mas persistia uma moral bafienta e
mole, colada às pessoas, esse horroroso sentimento de culpa – o pecado dos
laicos – uma polícia dos costumes que continuava no activo.
Voltou à realidade, foi uma fracção de segundo. Fotografias
pequeníssimas mas apetitosas, tudo à mostra, corpos de mulheres e homens com atributos
apreciáveis, levando a imaginação a antever os não visíveis atributos potencialmente
apreciáveis. As mensagens estão limitadas ao slogan que promove o produto e aos contactos. Estamos na era da
imagem, do imediato. A palavra atrasa a correria histérica para lado nenhum,
cansa o pensamento, não há tempo para palavras.
O que começou por ser um desfolhar meio entediado das páginas de
um jornal na sala de espera dos clientes do seu escritório, finalmente vazio e
silencioso a esta hora de final do dia em que se fez dinheiro, tomou-lhe o
interesse quando se lembrou – caído do nada, como caem a maior parte dos
pensamentos – que se sentia particularmente cansado do gato que não interagia,
do filho que só asneira e nunca mais cresce decentemente para se fazer à vida,
da esposa formalíssima, que apesar de boas famílias, não olha para ele há anos,
a não ser para referir a uma nódoa ínfima na gravata de seda, à saída de um
jantar com amigos, dizendo-o numa mistura de spleen britânico, e ódio ribatejano, se é que se entende esta
imagem.
Por estas razões, todas a partilharem o primeiro lugar na
hierarquia da infelicidade, ele acha-se no direito legítimo de se oferecer um mimo.
Acende um cigarro - não está ninguém para o impedir e o
escritório é seu. Desaperta o nó que o espartilha e escolhe.
“Beldade
das estepes geladas, fogosa como uma índia dos trópicos”
“É esta, elas não anunciam assim. Há poesia e mistério neste
anúncio.”
Av. Ushuaia, porta em frente centrada com a estátua, a caminho,
logo se dará uma desculpa por chegar atrasado ao jantar.
Não estava longe mas aquela hora enervou-se com os idiotas que
não deviam conduzir e andam nas ruas para ocupar espaço e tirar a paz de
espírito aos outros.
Também não foi fácil estacionar, missa das sete na Igreja de
Nossa Senhora dos Necessitados. Se se cruzar com a tia Rosa, que vai sempre à
missa das sete, terá que a despachar num golpe de génio, ou vai ter que lhe contar
o que fez desde que acordou, com pormenor e vírgula.
“É aqui. Bonito prédio. Tocar quatro vezes como combinado por
telefone. Cá vou eu.”
Cinco andares sem elevador. Cento e cinquenta e um degraus
(vá-se se lá saber porque deu número ímpar). A vontade era tanta que foi bem
até ao segundo andar. A partir daí (lembra-se bem que era o segundo andar
porque a porta tinha um tapete com dois ursos abraçados ao número 2) foi
ficando sem oxigénio, enquanto ia contando os degraus, até perder a conta. A
lucidez cada vez mais turva, tão turva que levou uma eternidade distinguir a
campainha e tocar.
Foi atenciosamente recebido por uma senhora (seriam duas?) e um refrescante
copo de água, que não melhorou em nada o cansaço terminal. Disfarçou e tentou
manter a compostura.
Sentaram-no numa poltrona numa sala com um Buda dourado enorme e
gordo como sempre representam Buda, e uns pauzinhos de incenso, um cheirete
intenso, a debitar para o ar já de si escasso, odores da India ou do Paquistão,
ou a ideia que se tem do que seja um cheiro genuíno nessas partes do mundo.
Toda a sala balouçava escandalosamente. Com o olhar e o
entendimento desfocados, acabou por escolher a que lhe pareceu ser a beldade
das estepes geladas, uma simpatiquíssima morena que lhe foi dando palmadinhas
na mão e não parava de soprar no seu rosto, que estava cada vez mais azulado,
sem se dar conta disso. As outras meninas nem se mexeram, mal olharam para ele
– elas é que eram as putas e ele é que tinha a peçonha! Foi por esta simples atitude
solidária que ele escolheu a morena da tundra siberiana.
Mulher magnífica! Espécime rebelde!
Foi a melhor massagem da sua vida!
De tal forma boa, a massagem, que se deu conta do espírito a
flutuar no algures, às alturas do tecto do quarto, observando-se a si mesmo,
fora do corpo, repousado e inerte na marquesa, todo besuntado de óleo de coco e
amêndoas doces de um país da bacia mediterrânica. Ela, a morena rebelde e meiga,
carinhosa em geral como são as gueixas siberianas, profissionalíssima, para
cima, para baixo, reanimando toda a sua musculatura. Aquelas mãos milagreiras,
sabiam de cor todo o dicionário de músculos do corpo de um homem.
Neste preciso momento ela desnuda e em pose muito sensual, sussurra-lhe
ao ouvido não se sabe que cicios, não ele não a ouve, ausentou-se do seu corpo.
Será um sono hipnótico? Atingiu um nível de relaxamento género místico
oriental?
Foi uma excelente decisão ter vindo, valeu a escolha e o preço.
Daqui já não se mexe mais, não vai sair pelo seu pé da marquesa,
e a morena que o continua a massajar, tão absorta no seu trabalho, até que se
canse e perceba que se o chamar ele não lhe vai responder, vai ter uma bela de
uma surpresa, quando discorrer que está e massajar um morto acontecido recentemente.
É certo que está habituada a ter poucas reacções de sucesso
imediato nos homens daquela idade, mas como é zelosa não desiste ao primeiro
insucesso.
Vai ser o cabo dos trabalhos para o tirarem daqui. Que história
irá contar a sua formalíssima esposa à tia Rosa, quando esta no velório se
aproximar da urna e vir que o defunto fenecido está de lado. Porque raio o
puseram assim?
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