O local não podia ser mais arejado, é irrelevante se faz bom
tempo, que agrinalda o espaço, ou se chove: uma cortina de pingos de chuva pode
ser plúmbea de bonita.
Neste caso em que o tempo climatérico não conta, avistam-se
cumes de mastros com movimentos ritmados num parque de estacionamento para
barcos de recreio. Em segundo plano corre um rio que nesse acontecimento
terminal de ser rio penetra na salinidade do mar, une-se com o seu infinito,
realizado está. É um segundo plano, porque entre os mastros e essa qualquer
coisa que desconfiamos seja mar, armazéns desfeiam o que podia ser poesia.
António foi escolhido por esse lugar para viver e escrever cinco
romances de amor. Cinco versões da mesma história, com nomes distintos, mas
femininos, e todavia sobre o amor, o tema de toda a atenção. Na vida o que
sobra de outros assuntos são banalidades.
Este homem reside num endereço sem caixa de correio, vizinho de
outros escritores de palavras que não escrevem sobre o amor, mas sobre os entendimentos
e desentendimentos do mundo – banalidades - relatores passivos de episódios
diários. Em vez de florescerem, as suas palavras mirram no instantâneo em que
são lidas.
Vive no edifício contíguo a um jornal. À sua porta, antes da
linha de conforto. Habita na parte de fora da casa.
Os jornalistas cruzam-se todos os dias com ele, eventualmente
até se cumprimentam, mas não sabem que este homem corajoso escreve sobre o
amor, ocupados que andam a notificar os andamentos coxos do mundo, distraídos
nessas pequenices.
Se conhecessem o seu trabalho esboçariam grandes considerações e
salamaleques: um homem que escreve sobre o Amor é um homem de respeito e
cartola.
No tamanho de um só dia escreveu trezentas páginas. Só trezentas
páginas dão por findo um dia infindo. Quando terminou sentiu-se menos mal, o
que foi bom, venceu as agonias do relógio, ilustrando as páginas com palavras,
uma forma de representação tão real como outra qualquer.
Os companheiros da rua consomem o dia em caminhadas nos bordos
das margens do rio, António fica-se pelo escritório a céu aberto, sentado na cadeira
branca, plástica, de pernas cruzadas com os cadernos pousados no tampo da mesa
inexistente mas imaginada, com um pedaço de contraplacado a fazer a função.
Quando chega ao fim de cada linha e antes de navegar a próxima, levanta
precisamente fixado o olhar para as pontas dos mastros, fuma um cigarro
enrolado e chama pensamentos.
Uma paisagem de maresias diante dos olhos é agradável, mas
António não pensa nesses luxos, nem tem picos de felicidade.
Perdeu o rumo da vida quando o primeiro nome do primeiro romance
de amor lhe faltou, resolvendo morrer prematuramente. Ela não o avisou que ia
morrer e ele sentiu-se traído. Quando se perde um grande amor com vinte anos,
fica-se naufrago para a vida inteira. Os que se vivem depois são actores menores, alguns até mentiras
cobardes inventadas para encher o espaço, palavras cruzadas para enovelar vazios.
Quando se perde o amor é provável que se caia na asneira. Muitos
passos em falso, com a raiva babando. Desumaniza-se o coração, o pior que pode
acontecer: remeter um órgão nobre para a desinteressante função mecânica de
bombear vida sem sentimento para um corpo abandonado de si.
Asneirou em tudo e acabou como correio internacional de droga.
Para ele era um emprego como outro qualquer: ficou sem o manual de ética quando
virou essa esquina da vida de peito desfeito para o nada. Despido dessa forma
tão violenta, pode-se exercer todas as profissões sem remorsos.
Treze anos depois, sem papéis de identidade para além da posse
de um nome, está quase a fechar o ciclo. Terminados os romances sobre o amor –
o castigo do seu deus cruel para a redenção - está pronto a viver.
E tudo vai acontecer naturalmente como começou naturalmente. Os
acontecimentos não se anunciam pelo mordomo, enquanto despem o sobretudo na
antecâmara.
A mudança de residência será descomplicada: um saco de roupas e
os cadernos. A cadeira não fará falta e os outros móveis são caixas de cartão
desmontadas que não parece fiquem bem na nova decoração. Não se espera um
último olhar de despedida. Não se olha para trás quando se esqueceu.
Num amanhã próximo, António vai resgatar dos arquivos o seu
bilhete de identidade e com a mais plena das tranquilidades vai viver abrigado
por um nome. Publicou cinco livros sobre o amor, mas deixou ficar os cadernos à
porta do jornal.
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