As festas da nossa aldeia, estejam elas habitadas por
fantasmas que há sua maneira também comemoram, ou recebam um milhão de
festejadores, são as festas da nossa aldeia, as melhores, o nosso orgulho.
O marco geodésico que sinaliza a comunidade exactamente
geográfica onde nascemos, ou onde queríamos haver nascido e da qual nos fazemos
adoptar como filhos da terra - demos as voltas que dermos por esse mundo fora –
é a guardiã extremosa da nossa essência, que se chama folego: um sopro-chama,
que nos soprou pela primeira vez, enviando-nos para as rotas a cumprir na vida.
Todos os anos, com hora marcada abraçam-se de costados os
emigrados, rapa-se o fundo às conversas para pôr em dia, faz-se a procissão da
santa, come-se e bebe-se, e a música pirosa e brejeira, ouve-se em volume
estúpido, saída aos gorgorejos dos auto-falantes pendurados nos candeeiros de
rua.
Pela manhã quando o tempo ainda está propício a louvarmos o
Senhor, sai a procissão finda a missa solene celebrada na igreja acanhada que
não acomoda o povo todo. Os que ficam de fora - a maioria - ultimam os
preparativos para se fazerem de observadores ou de participantes. Os
absolutamente descrentes, encostam-se aos balcões das tabernas ou cá fora, nas
paredes, e apesar de serem apóstatas, também querem ver a procissão a passar.
A fervilhação é muita: os meninos a serem vestidos de anjo e
outros personagens coetâneos, nos retoques finais, as mães a esfregarem com
bálsamos os joelhos que vão pagar promessas.
Repenicam os sinos, abrem—se as portas de par em par, vai
começar a procissão.
As velas na mão, que pingam pingos queimosos complicam os
equilíbrios concentrados dos ombros que sustêm os andores dos santinhos e das
santinhas, atafulhados estes de mãos, pernas, ouvidos e cabeças - membros de
parafina - representações virtuais com os nomes dos donos escritos, pedidos dos
homens da terra para os senhores do céu.
Desejos para apaziguamento de achaques, de imperfeições,
solução para doenças sem solução, cura dos males de possuimento e
assombramento, coisas dos espíritos, que cozem no caldeirão do diabo, piores
ainda que as coisas do corpo.
As manifestações populares de louvor ao sagrado acontecem
antes do almoço, e assim está bem, quando os homens ainda podem levar os
andores por bom caminho, quando o mundo ainda não atingiu a cota diária de
pecados feios, quando ainda é quase puro e portanto ingénuo.
As autoridades e os participantes aproveitam o fresco da
manhã para fazerem uma peregrinação estimulante, imprimindo as suas pegadas no
chão para elevação das almas.
Nas varandas, ricos e pobres em ostentação terrena de honras
à Senhora, penduram colchas – a melhor peça do enxoval - umas de seda e outras
menos. Unem-se famílias, novos e velhos, para ver passar a procissão, benzem-se
e cuscam as indumentárias dos vizinhos, comentando sobre os desavindos, vindos
ou ausentes, dos poleiros do lado.
E continuam a benzer-se: uns genuínos no sinal da cruz,
outros em fingimento. Fiéis profissionais cobrem o rosto com mantilhas negras.
Cá em baixo, os empregados de Deus hirtos e compenetrados, aspergem a água
benta, absolvendo pelo líquido puríssimo e santificado, os homens, as mulheres
e todas as criaturas da terra.
Raparigas espigadas lançam dos alpendres códigos de sedução
aos rapazolas, garbos e na plenitude da energia, que carregam os andores
pesadíssimos fazendo de conta que não custa nada. Os mais maricas usam
almofadas para protegerem os ombros do peso absurdo dos palanques. Retribuem a
malícia delas com meios sorrisos e piscar de olhos, ansiosos que a provação acabe.
Há quem finja que não é nada consigo.
A abrir o cortejo a cavalaria da Guarda, tantos cavaleiros
quanto a importância da localidade.
A fazerem o cordão que separa os participantes dos
observadores, os escuteiros, no papel que define a epítome da sua existência:
ao serviço da boa acção.
Na primeira fila, compostas, engomadas, engraxadas, as
autoridades civis e militares, desfilam sincronizadas no mesmo passo, no modelo
de caminhar politicamente correcto que aplicam sempre nas cerimónias de rua,
nas procissões, nos desfiles, na deposição de coroas de flores, na entrega de
medalhas e insígnias, nos casamentos e funerais de Estado. Andamentos empalados
e solenes, de cabeça arrebitada, olhos no nenhures e com um rigor facial que ao
ver de uns é seriedade e de outros frivolidade de interiores.
As autoridades civis trajam fato e gravata escuras. Os
militares fardam de gala, os dourados das galonas ofuscantes e as botas -
engraxadas por amanuenses - espelhando brilhos.
O Padre, ricamente paramentado, com o alvo e puro das vestes
realçando os dourados da mitra, arrasta um báculo com a cor dos ouros;
protege-se da canícula debaixo de um guarda-sol carmim transportado por
sacristãos convictos do seu papel.
Os diáconos também estão negros, por dentro e por fora,
incluindo as auras, para quem as vê. Dos seus pescoços pendem panos vermelhos,
que seriam xailes não fossem homens de deus.
Depois das eminências na terra, vem o cortejo das
celestiais, andores em figuração dos seres imateriais, recriações de caras e de
corpos humanos, para terem rosto. É muito difícil a adoração do invisível.
Abre o desfile a Nossa Senhora da Boa viagem, revestida com
um longo e imaculado manto branco e azul celeste. Pousa os pés virginais sobre
num tapete de rosas cor de chá, rodeando-os a parafernália dos membros de
parafina num conjunto de grande incongruência. Dos cabelos – peruca de cabelos
falsos - pendem fios de nylon com notas de euro e outras estrangeiras, dádivas
e créditos, coladas a fita-cola. Notas esvoaçantes.
Seguem-se outros andores, mais santas do que santos. A
família de Deus é numerosa, tem muitos nomes. Mas hoje nenhum outro será mais
louvado que o da Padroeira, é o seu dia glorioso, deus a mantenha junto de si,
mas não deixe nunca de olhar para os homens.
Segue-se no alinhamento o retorno à terra. Desfilam as
filarmónicas, a local, e as das redondezas. Quase todos os músicos têm um
chapéu de general, porquê? E quase todos, eles e elas, têm gravatas vermelhas,
com nós amanhados como se pode e soube a quererem asfixiar o sopro deles. Tocam
à vez. As músicas são as mesmas, umas mais ensaiadas, às vezes nota-se a falta
de talento dos músicos.
Os espectadores assolapados nos beirais esvanecida a fase em
que tudo o que era importante para fazer-se visto e ver, foi, recolhem-se e
mesmo que as bandas sejam dissonantes, não importa. Ninguém quer saber das
bandas.
Uma longa e comprida cauda de povo fecha o desfile. Vão
descalços e alguns de joelhos, procuram no sofrimento físico as glórias da
salvação. Outros mais racionais, ainda assim bons cristãos, desfilam calçados.
Fazem bem, não sofrem tanto.
As criancinhas encantadoras – porque se tem que dizer assim
– salpicam de colorido (imagem de gosto duvidoso), o cortejo inundando-o de
colorido e graças: as santinhas, os santinhos, os guardas romanos, as
ovelhinhas, tão lindo, tão lindo!
Elas levam muito a sério o personagem que vestem, tímidas
transbordantes de felicidade, na sua primeira mimetização como actores
principais.
Com toda esta conversa a procissão já percorreu as ruas do
lugar, o calor aperta, o cortejo alenta-se e alguns meninos acusam o cansaço,
tão jovens que são para aguentarem o tempo interminável que levam as coisas
sérias a passar. Não é fácil fazer de deus, e se estes seres virginais
operassem milagres logo ordenariam ao corpo um suplemento de energia para a
aguentar o que começa a ser um suplício.
Insidiosamente a desordem germina.
Os Santo António, rapazes tolhidos de movimentos pelas saias
que não estão acostumados a usar, arregaçam o saiote e prendem-no à cintura,
prendem-no com o cordão. Os rosários de contas gordas, desconfortáveis, pendem
as cruzes para as costas, esganam as gargantas. Muita cabeça se coça do
incómodo das áureas, das tiaras e dos véus de musselina. Os piolhos não ajudam
em nada, põem-se doidos com o calor. Os “romanos” – ninguém quer ir mascarado
de romano – já andam com a gálea virada para a nuca em estilo “mitra”, uma
“tribo” urbana. Os catraios mais irrequietos ensaiam lutas com as espadas de
madeira, arrastando os escudos de lata pelo chão, numa barulheira que se
mistura com as notas desafinas das filarmónicas. Tão pequeninos e desavindos,
ensaiando cismas futuros.
Não estivesse a procissão a acabar e os sacristãos sempre a
admoestar os catraios e a chamar ao entendimento, e a compostura do episódio
seria difícil de enquadrar na fotografia.
Nem na casa de deus se consegue harmonia.
Finalmente todos desembocam no cais, compostos ou
descompostos, como podem e já se viu. As embarcações dos pescadores e dos
marinheiros de fim de semana, vindas de todas as margens do rio, aguardam
reverentes pela benção da Senhora, com procuradoria do senhor Padre, que a
santa, por ser de madeira não mexe as mãozinhas para aspergir os batéis dos
crentes muito crentes, que necessitam desse chuveiro de purificação para se
sentirem protegidos no mundo dos homens e das feras.
Unções cumpridas, arreiam-se os palanques, pousam-se no chão
as gaitas, desfazem-se definitivamente os nós das gravatas. Há quem refresque
os pés e os joelhos massacrados na água retemperadora e acastanhada do rio.
Cada um vai à sua vida, que é só de cada um, sem mais companhias. Depois de uma
manhã assim, plena de emoção e suor, o courato crepita nos fogareiros a pedir
almoço urgente, que mais para a tarde largam-se toiros.
Que bela é a procissão da minha terra!
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