A manhã está fresca, mas nada que se compare a outras manhãs no
inverno. Está fresca mas já é outra coisa, apresenta-se com uma ligeireza de se
querer acalorar. Sente-se no ar, e na disposição. Pressente-se a possibilidade
de um dia menos macambúzio.
Augusto finaliza os preparativos de aparelhar a sua famel, companheira de uma vida em
banho-maria: os dois, em navegações à vista em modo tépido.
Sem surpresas – que é um forma de dizer nenhumas - nem alteração
do plano estabelecido, abre-se a cortina do quotidiano. O seu veículo e
compadre, tem manias – não pega à primeira - e só reage por vontade própria,
por muito que o Augusto o maldiga com o costumeiro chorrilho de asneiradas e
ensaios de pontapé.
É assim esta relação, intempestiva e amorosa, como todas as
ralações que desgovernam o coração. Resolvidas as dialéticas homem-máquina que
apesar das diferenças de espécie não deixam de ser arrufos sentimentais, lá arrancam,
amuados para não variar.
Sem pressa para chegar ao destino, sempre o mesmo, a famel – que incorpora aqui o papel da
vítima - cuida-se na velocidade. O condutor deixa-se conduzir num estado que é
um meio-termo entre o adormecimento e o pensamento aparentemente estático dos
velhos.
Interrompem a viagem curta, uma deslocação insipiente entre dois
pontos numa distância ridícula, para tomar café com cheirinho no lounge da Candinha. Ele não espera
encontrar ninguém senão quem já sabe que vai encontrar: o mobiletas, assim chamado, porque desde que se lhe conheceu a barba,
anda montado num híbrido que não é motorizada nem bicicleta, um chaço com um
motor ajudado pelo pedalar do dono nas subidas mais ingremes.
É nestas pequenas coisas que se vê um homem: deixar-se de
criancices e ser macho. Este não conseguiu abandonar a bicicleta de infância,
apesar de a disfarçar com um motorzeco, o que lhe retirou definitivamente a
credibilidade que se exige a um adulto.
Assim, meio criança-meio homem por concluir, foi eleito por
maioria de voto o bobo da aldeia. Todas têm o seu, a esta calhou-lhe o ciclomotorista,
que toma a cargo com profissionalismo e zelo a função que lhe compete. No
entanto à noite dorme mais descansado que os outros, porque não tem que
desenvolver pensamentos elaborados.
A essa hora do dia nascente – ainda virgem de desfechos nefastos
e outros mais aceitáveis por acontecer, com marcação para essa data - para além
da Candinha (a dona do café) que passa os meses de inverno especada no mesmo
sítio dando a sensação de ter criado musgo nos pés, e ter desenvolvido raízes
fundas chão adentro - só o dito do pedaleiro frequenta o local.
Não se julgue no entanto que a Candinha-musgo, não se
transfigura no tempo quente, na anfitriã do local mais in da aldeia.
Na hora de acordar dos ricos (cada ser com o seu horário), o café
transforma-se no centro do mundo: o maior ajuntamento de chinelos de dedo com
brilhantes do país. E a Candinha, mulher renovada, pintalga os beiços e os
olhos, arremenda-se com um decote generoso, para os receber e servir café e
bolinhos doces e bons.
Para as gentes da população, não passa da Candinha que todos viram
nascer e teve sorte na vida ao lembrar-se de montar um café.
O Augusto e o bobo pegam cedo ao serviço de pescadores em terra. Ultimamente a coisa não anda de feição: robalos anoréticos e
umas cavalas ao engano da rota, e mesmo assim quando se enganam - espertas como
tudo - não abocanham qualquer minhoca. Os robalos não, estúpidos como as casas:
vão de bocarra aberta a tudo o que mexe. Às vezes têm azar e o Augusto e o mobiletas agradecem.
A vida, seja em que escalão for é uma lotaria desumana, comentam
os peixes, e crê-se que outras espécies.
Mas ainda só estamos no momento do cheirinho: um dédalo de
medronho acompanhado de um esgar de desprezo ao mobiletas. Afinal são rivais de profissão, apesar de esta praia ter
mais de muitos quilómetros de extensão, que se quisessem nem se punham a vista
em cima, mas não, ficam ao lado um do outro.
Fazem de propósito para se controlarem mutuamente, que olho que
não vê, inveja sente. A imaginação é a grande mestra das efabulações e enganos.
Melhor portanto que se autorregulem, juntos sabem o que cada um pesca, e vende
nos restaurantes da aldeia.
Colocadas as introduções nesta história e com a promessa de um
dia com gosto de Verão, o velho despede-se da dona do estabelecimento, deixa o
rival em monólogo com o cálice e arranca sem delongas para escolher o melhor
lugar da praia (o seu e o do outro).
Mais tarde quando o mobiletas
chegar, dirá de rompante e para dentro da sua cabeça todas as asneiras que
conhece, amaldiçoando a concorrência. Mas isso são fraquezas de quem já estava
enchido de saudades do companheiro.
Como em todos os espaços materiais, a ideia de pertença só
reside na cabeça dos seus ocupantes, o que quer dizer que esta praia a perder
de vistas, é deles e dos outros que a gozam para proveitos retemperadores.
Horários diferentes, outras nuances
do dia que passa, sem que se cruzem no passadiço de madeira.
A praia funciona como um “time
sharing ”, conceito dos saxões para a obsessão da posse: de mãos vazias, mas
convencidos que não.
Como na generalidade das actividades humanas, os rituais fazem a
harmonia, e o pescador tem os seus: pisa a areia e benze-se com a mão esquerda nunca
pôs os pés numa igreja, este povoado não a tem pública, só a do senhor,
envolvida por muros privados); pousa os aprestos vai direito ao mar, molha os
dedos da mão direita e leva-os à boca. O que se segue são trabalhos habituais
da profissão – coisas técnicas – e portanto sem interesse descritivo.
Nesta fase da sua vida só continua a pescar para enganar o
tempo. Não tem jeito para ficar em casa, menos ainda para o paleio da mulher.
As mulheres falam até à exaustão e ele nunca percebeu verdadeiramente do que
elas falam. É um homem simples.
Estão portanto na praia, juntos,com os dedos a sentir a sensibilidade
da linha tensa que se perde na rebentação.
A aldeia entretanto ganha outras cores e odores mais perfumados.
Animam-se tias, tios e sobrinhos em corrupio ao café da Candinha e ao
supermercado do Gomes (sempre de chanato no pé e barbas blasé): a mercearia mais fina de toda a margem Sul e até mesmo nos
limites dos Algarves.
No Gomes há de tudo, é bem possível que venda caviar “Beluga”, mas só o pão alentejano já vale
por essa iguaria.
Quando a tribo hippie-chic
põe os joanetes cuidados no contacto com a areia da praia, os pescadores dão
por finda a faina, não são pessoas para convívios impossíveis.
Na entrada da praia um bar com música estridente, cheio de
cocktails coloridos, tem um DJ de
serviço permanente, contratado para poluir um ambiente quase puro.
É provável que os utentes prefiram assim, desabituados que andam
de silêncios, ficam protegidos de picos de ansiedade. Já não sabem viver sem
ruído.
É suficiente um pequeno afastamento desse epicentro e esquece-se a falta de consideração pelas pessoas.
O areal extenso espelha os dourados dos grãos de areia, e é
ideal para apanhadores de conchas, carapaças e pedrinhas. As águas em nuances de verde, são frias mas boas.
Pode-se confiar nelas, não atraiçoam.
O fim do dia é marcado pela invasão de enormes mosquitos
(mutantes autóctones), agora muitos mais, porque antes aviões sorrateiros a
fugirem dos ambientalistas aspergiam a zona, para que os donos das belas casas
de veraneio, pudessem beber tranquilamente o seu gin, esparramados nos baloiços dos alpendres.
Por essa hora, quando a gente abandona a praia, a aldeia volta a
ganhar ânimo, enchem-se os restaurantes fraquinhos, para servir jantares – bom,
bom é “A Dona Bia”, na estrada para o
Carvalhal, mas só por marcação, e atempada deve ser, senão arrisca-se a passar
o Verão e não conseguir mesa para desfrutar os magníficos arrozes que a carta
oferece.
O velho e o mobiletas
estacionaram há muito os traseiros, num tasco escondido dos olhos dos tios.
Estão como hão-de ir, não para a cova claro, mas para casa, e de
gatas, desconhecedores absolutos do nome pelo qual são conhecidos, tal a sede
que a pescaria lhes deu, e obrigou a mitigar em mines, até ao estado de inconsciência feliz em que agora se
encontram.
Não se disse ainda que a praia bordeja de um lado (do outro é
terreno pantanoso) toda uma península, que penetra a foz do rio dos golfinhos,
o Sado. Pode-se ir de barco (caro, mas o gozo do belo – como tudo – tem um
preço), e ficando deixar para trás as marinas, os hotéis, os casinos e as casas
todas iguais ou parecidas, em banda e desinteressantes, há-de chegar-se à terra
da Comporta, onde vivem estes amigos.
Parabéns Luís, pelo magnifico texto! É incrível, como consigo imaginar, dentro da minha mente, o contexto que aqui apresenta...mais incrível é saber que a minha imaginação poderá ser muito diferente daquela que o autor a concebeu, mas é nesse facto que está a magia da leitura e da escrita, que nos fazem viajar e conhecer novos espaços e seres. Beijinho
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