Uma noite fria e escura, tão escura que nem acreditamos nela
como noite. Em condições normais as noites têm as luzes das estrelas acesas,
penduradas na teia de palco do céu, mesmo que encobertas por mantos de nuvens,
esta não está posta assim.
Sob os auspícios desconfortáveis desse epifenómeno, debaixo de
um viaduto da cidade, as paredes de betão estão forradas por azulejos com
desenhos de medusas, em azul. Na rua que cruza essa ponte suspensa, uma
marisqueira conhecida está banhada de luz e gente, e talvez por isso, por ser
reconhecida, do lado de cá os carros com assinatura esperam que os ocupantes os
venham buscar depois de refeições que não são baratas. Regressam mais tarde ou
mais cedo, animados pela qualidade dos vinhos.
O João toma pouco conta dos carros. O que faz ali, nesse sítio,
é estar estacionado como os carros. Não se dá por ele, não se vai dar falta
dele.
Mendiga euros no enquadramento das medusas, em que nunca
reparou. É um homem falho de história, há homens assim, que se dão ao luxo – ou
miséria – de viver a vida sem história. Terão vindo ao mundo nos intervalos do
tempo, em que não acontece nada de relevante para contar, num tempo vácuo, a
cumprir planificações de leis desconhecidas, como figurantes de circunstância,
só isso, que é nada.
É um homem revoltado, órfão de abraços. Tem uma conversa
circular, violenta. A sua não conversa não culpa os seres ubíquos – quase sempre
ausentes noutros afazeres - culpa-nos a nós: por não lhe termos dado atenção.
É essa a sua reivindicação: atenção. Ele deixou escapar esse
cuidado dos outros quando desistiu, o que aconteceu há tanto tempo quanto a sua
biografia, que jaz em branco albino num livro por escrever, e agora queixa-se
do pecado do descuido.
Desinteressou-se das cores, dos cheiros, de sons agradáveis, do
entrelaçar da sua mão com uma outra, a pedir prazeres. E quando isso lhe
aconteceu - o desapego - não se sabe se devido a um grande sofrimento interior, ou um esmorecimento
geral, faleceu violentamente.
Faleceu continuando vivo, no cumprimento de um calendário
absurdo e cruel, se bem que o tenta encurtar.
Mas a vida é como é, e mesmo mortiça, fina-se por ordem
superior, em condições que não se escolhem: até ordem contrária, mantêm-se a
desgosto como desguardador de carros
e de si mesmo.
Que efeito faz uma parede forrada de medusas azuis que ninguém
vê, a sustentar um viaduto? Teve a sua glória no dia da inauguração e ficou-se
por aí. Os artistas, os fotógrafos e os homens dos discursos pomposos,
viraram-lhe costas e nunca mais se lembraram da sua existência, que têm uma
agenda preenchida de novas inaugurações para se fotografarem.
É possível que tenha sido feita a pensar no João, a dar-lhe vislumbres
coloridos, enquanto arruma os carros e barafusta com o universo. Se não foi
essa a finalidade, o viaduto poderia ter ficado nu e desconfortável, gasto desnecessário sem usufrutos.
É uma pena o João não achar cor nas cores, e a darmos opinião,
deveria pelo menos ter manuscrito a sua assinatura no livro. É que a partir daí
teria sido mais fácil escrever alguma coisa. Assim o que se pode pôr é nada,
matéria insuficiente e escassa para contar a história de uma vida.
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