Desarmava as pessoas porque não sabiam como reagir.
Aproximava-se demasiado
delas, dos limites de conforto, em que cada um se protege das intempéries dos
outros. Era esta sua atitude por princípio distraída, mas provocadora, que
punha os visados em atitude defensiva.
Mas ele não era, não podia ser, de outra forma. Era a sua forma,
impressão, pegada como agora se diz.
Furtivamente e já estava do lado de cá da intimidade de cada um,
o que se tornava desagradável e por isso mesmo inconveniente, dando por vezes
azo ao afastamento brusco e repulsa. Só apanhava os incautos ou os muito
distraídos, quem o conhecia melhor – que melhor ninguém o conhecia – já não lhe
permitia essas aproximações.
Vivia num mundo só seu por isso mesmo, por ser um intrometido.
A sua táctica, se se pode chamar táctica a um princípio ingénuo
de abordagem, era simples: plantava-se de olhos sobre os olhos dos outros, a
cair-lhes literalmente na cara. Não desarmava, nem sequer um pestanejo, olho
fixo. Se não recebesse resposta, ficaria a eternidade que o deixassem,
aparentemente deliciado, ávido em aspirar os interlocutores com os olhos.
As pessoas afastavam-no imediatamente com repulsa. Melhor,
temerosas.
Restava-lhe a abordagem de retaguarda, o seu plano “B”:
“Como te
chamas?”
Concedia o tempo mínimo para a resposta e repetia a pergunta
intensamente. Se respondiam voltava a insistir na aproximação visual, caso
contrário, virava costas e esvanecia-se, desintegrava-se em pó.
Quando não andava nestes afazeres de visão detalhada, desenhava
coisas estanhas. Não eram estranhas, eram inusuais. Círculos sobre círculos com
um grande rigor no traço traçado pela mão. Aparentemente iguais, só com
alterações na cor.
Desenhava geometrias lindíssimas, ofuscantes mesmo. Tinha
milhares de desenhos destes, já que era a segunda actividade que mais tempo o
ocupava.
Pode-se com estes dados concluir que é um indivíduo popular?
Não, não tem amigos. Tudo o que se afaste um milímetro da norma, esmorece as
pessoas.
E depois também é certo, e humano, que as pessoas desistem
fácilmente. Se estranham, se desconfiam, se não conseguem sucesso na pedagogia
de pôr os outros iguais a si, macambuziam e abandonam.
Se interessa saber, chama-se Pierre, nome comum, ele não.
Se é crescido ou não desconhece-se, é daqueles indivíduos em que
não se adivinha idade.
Frequentou uma escola mas como passava o tempo a incomodar os
outros, ou a traçar os rabiscos que aqui se deram conta, para bom andamento da
escola pública e como não podiam dispensá-lo porque parecia mal, ofereceram-lhe
um défice absoluto e colectivo de atenção. Até que um dia ele deixou de
aparecer nas aulas. Problema resolvido.
Um professor inconformado, quis saber dele.
Escarafunchou nas perguntas e diligências, mas como todos o
quiseram apagar confortavelmente do seu campo de visão, não obteve pistas.
Juntar inconformismo à profissão de professor é um risco
elevado. Não se ganha simpatia.
Mas este professor era um homem com a qualidade da persistência,
e prosseguiu nos seus inquéritos, até que redescobriu o paradeiro do Pierre,
naturalmente confinado a casa, a última cela dos assustados.
Às onze horas da manhã de uma terça-feira como outra qualquer,
bateu-lhe à porta. Bateu duas vezes, e foi atendido. Pierre aspirou-o
profundamente, num primeiro momento que poderia parecer de tensão.
O professor,
que é dos rijos aguentou o impacto visual.
“olá, como te chamas?”
“olá, porque me olhas?”
“gosto dos teus olhos, vou desenhá-los”
Deixou o pedagogo a falar sozinho, e desapareceu no corredor.
Intrigado, foi por ele, deu por ele num pequeno quarto quase na totalidade
branco, atafulhado de folhas de papel de todas as dimensões e texturas cheios
de linhas concêntricas pintadas com todas as cores conhecidas.
O miúdo absorto estava a preencher os espaços de uma nova folha.
Círculos sobre círculos em tons de castanho.
“desenhas bem”
“são os teus olhos”.
Obrigado João por esta história deliciosa!
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