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O meu menino é Artista.



Sou mais para uma colcha bem feita ou um naperon, isso sim até aos olhos me chega a maré alta. Não é que tenha jeito, com estas mãos sapudas e desajeitadas, uma sempre a fazer o que a outra não quer, mas valorizo um trabalho bem arrematado. Coisas de mulheres.

 Sou uma pessoa que se contenta com coisas simples: um sorriso do meu menino à sua Maria, faz-me sentir Mãe e pronto.

É homem e casou, mas continuo a cuidar dele.

Há dias em que a sua casa está uma desarrumação , nem sei por onde pegar. O Manel merceeiro diz que os artistas andam sempre em festa. Não sei onde vai buscar estes conhecimentos das vidas dos outros, mas como merceeiro, com uma correnteza de fregueses a entrar e sair da loja, apanha aqui e acaba por ser um jornal andante, pombo correio sem asas. Sem sair da loja, arredonda na conta das batatas por um bom desabafo das clientas, e assim ganha esses conhecimentos das coisas importantes das vidas que por lá passam.

Restos de vinhos nos copos e beatas dos cigarros espalhados nos cinzeiros, houve noitada.
Virgem Santíssima, até me benzo com a mão esquerda e tudo, porque sou canhota, e não importa se é a mão do diabo, é com a que me ajeito melhor.

 O Meu António bebe que se farta e nunca dei por ele ser artista. São bebidas diferentes!

Hoje cheguei mais cedo e como o tempo agora já se conhece um bocadinho, abri as janelas para arejar. Estou mesmo a ver que não consigo despachar esta confusão. Não é por ficar mais uma hora ou duas sem ganhar mais, é porque ando com o tempo contado desde que nasci, não sobra, e sei lá eu se amanhã ainda tenho saúde para limpar a casa do meu menino, o que me rala.

Uma das paredes da sala, a que está de frente para os maples está toda gatafunhada. Não sei o que andaram a fazer, mas encheram uma parede amarela tão bonita, cheia de riscos pretos, parece uma floresta num dia de temporal com nevoeiro e tudo. Não se vê palmo à frente dos olhos.

A patroa tem a mania de fazer pinturas nas paredes, dessas que não se percebe nada na.

Começo por onde?

Pelo meu menino vou ao fim da rua – já o tinha dito? – e por isso também lhe vou deixar a parede que nem um mimo. É por ele, não é pela senhora, Deus me perdoe, que fala como se tivesse a boca cheia de pipas, não se lhe apanha nada. Tanta moça jeitosa e fina que temos cá e logo havia de ser estrangeira!

Deitei mãos à obra e parece a Santa Engrácia, nunca mais se vê o fim.Suo abundantemente.

As horas já se atropelaram umas às outras e a parede está cada vez pior. Já usei todas as técnicas de limpadora encartada, com mais de vinte anos de profissão – sem reclamações ,que isto de um copo ou outro partido, acontece a todos -  e não consigo apagar esta floresta em dia de tempestade.

Já nem se veem as árvores, baixou o nevoeiro, e nem com velas encontro o caminho. Tenho um muro cinzento escuro à minha frente. Até parece que de repente ficou frio. Estou arrepiada só de olhar!

Se  não consigo limpar este temporal, vou pôr como estava antes, não há-se ser impossível. Riscos todos sabemos fazer.

Aqui está um lápis engraçado, “pastel de óleo”, vou experimentar.

Olha, não está  mal! Mais árvores, vou fazer mais, já que estou com a mão na massa que fique uma floresta como deve ser: pinheiros, castanheiros, nogueiras, faias, uma de cada. Até palmeiras leva, que é uma floresta de todas as espécies e famílias.

Começo a gostar disto. Se me sai uma coisa bem feita  – uma destas árvores que agora estou a imaginar -  sento-me no sofá a admirar a obra. É bom. É quase tão bom como olhar para os naperon.

Se isso é ser artista, gostava!

Pronto, está feito! Não é para me gabar mas ficou melhor que antes.  

Vou experimentar os outros lápis e até  pincéis. Como eles gostam de ver as paredes assim, pelo meu ai Jesus ainda vai ficar melhor.

Terminei, não consigo é tirar esta escuridão toda das mãos, a gordura entranhou-se nos riscos e nas rugas, parece que tenho um mapa cheio de rios pintados de preto, mas valeu a pena.

Foi dos trabalhos mais difíceis da minha vida. Se um dia destes apanhar o meu menino a jeito, sem que a senhora esteja em casa, que ela não se dá a intimidades com empregados,  pergunto-lhe o que é isto de ser  artista, só para tirar as minhas conclusões.

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