Percorro todos os dias o mesmo caminho, a caminho
do trabalho. Reconhecemo-nos caras, anónimos como eu; caras que tomam café,
atrás das vitrines de pastelarias, eles dentro, eu passeando o meu
olhar sobre eles; caras de transeuntes à porta de um supermercado de análises
clínicas, que já vi duas ou três vezes, em pouco tempo; caras de taxistas à espera de fregueses.
Dos que saiem da estação de comboios e fazem o
mesmo trajeto, rua acima, temos alguma intimidade , somos a mesma tribo.
Entreolhamo-nos, nas paragens temporárias enquanto não mudam sinais para atravessar as ruas que nos cruzam, e sempre os mesmos, expectantes da alternância para o verde dos peões, para serem os primeiros a chegar ao outro lado, da rua.
Entreolhamo-nos, nas paragens temporárias enquanto não mudam sinais para atravessar as ruas que nos cruzam, e sempre os mesmos, expectantes da alternância para o verde dos peões, para serem os primeiros a chegar ao outro lado, da rua.
São os mesmos de sempre que pausam nos quiosques para uma
vista de olhos na banca; os que vão pelo lado direito, ou esquerdo do
passeio, já os identifico; os do meio, geralmente, não são habituais, andam
mais pausadamente, não têm pressa de
chegar, seja lá onde, e atrapalham o tráfego.
Alguns conhecidos, desse momento efémero do dia, fumam
um cigarro ansioso à porta de entrada dos edifícios, ganham coragem para
aguentar.
Pais desorientados estacionam os carros em cima do
passeio , para depositar os filhos ensonados na creche, nem sabem eles que
existem peões. Outros fazem o mesmo só para comprar o jornal.
Hoje de manhã uma pomba, estava deitada neste
passeio atarefado e congestionado, e pensei que estaria doente, porque nem as
pombas, se deitam no meio de um passeio atravancado de pessoas a passar
constantemente. Mesmo habituadas a viver connosco, teriam que ser gente para
esse à vontade.
Estava deitada no local milimétricamente exacto
onde todos os dias, um mendigo, sentado no chão, olha para mim quando passo.
A pomba comia distraidamente migalhas de pão. O mendigo
que a esta hora já deveria estar ao serviço, substituiu-se pela pomba, ou
deixou-lhe de comer na véspera, para lhe guardar o lugar.
Será que já estive com Deus e nunca me dei conta?
Uma mulher, que já escreveu sentimentos, disse há muito tempo numa crónica de um jornal conhecido, que num deambular
sem norte, na Praça de S. Pedro em Roma, tinha visto o rosto de Nossa Senhora
no rosto de uma mendiga , provavelmente romena. O seu olhar não era deste mundo. Arrepiou-se.
O olhar do mendigo , que tem sempre a seu lado,
pousado no chão um livro aberto – que não identifico – é deste mundo, mas
olha-me como se fosse o olhar de Deus.
A pomba não
me olhou , estava entretida a comer, mas para mim, ele estava algures ao lado,
ou até mesmo, ela estava nele naquele lugar, onde ninguém ,que eu tenha
reparado nas minhas viagens a caminho do emprego, alguma vez se deu conta da
existência de um mendigo.
As pessoas andam muito distraídas.
No prato de
plástico das esmolas, cor de laranja, que ele coloca à sua frente, nunca vi nenhuma moeda, e tenho a vaga sensação que isso não o
preocupa em demasia.
Amanhã, se ele estiver por lá, vou fazer a
experiência de passar por cima dele. Se for Deus de verdade, trespasso um
obstáculo imaterial, disfarço, para os outros não acharem que estou a fazer
figura de tonto, e sigo o meu caminho. Se for só o mendigo, vou contra ele, e quando
ele me olhar com espanto, vejo-lhe o olhar misterioso de Deus.
O dia, depois, corre-me melhor.
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