Estou numa torre,
só pode ser uma torre. A altura desta torre é enorme, estou suspenso nela, sei
que tenho vertigens mas sou atraído involuntariamente para uma janela recortada
numa parede irregular. Está a acontecer comigo o fenómeno magnético de atracção
dos ímanes. Plasmado numa janela. Não distingo nada com nitidez. A força que me
atrai a esta possibilidade de janela, não me autoriza a mexer um único músculo.
Desagradável.
Estou colado a uma
janela porque pouco antes desse fenómeno involuntário ter acontecido, reparei
num ponto de luz minúsculo na imensidão da parede vazia, onde um luar provável
batia o pé às trevas da noite. E foi precisamente para esse ponto que fui
sugado, só porque olhei para ele.
...
Olho e pouco vejo,
mas continuo cheio de vertigens. Acho que flutuamos. Eu e a torre? Nem sequer
sei se estou numa torre ou num barco desgovernado. O balanço está na cabeça ou
vem de fora de mim?
...
Sinto que não estou
sózinho.
Estou numa sala,
mas a janela despareceu.
Quatro homens com
barba farta e óculos importantes com aros de tartaruga, debruçam-se sobre um
livro, no meio da mesa, no centro da sala. Cada um escreve palavras num caderno
preto com uma espécie de plumas antigas onde se molha o aparo num tinteiro.
Tenho a sensação de que escrevem coisas muito importantes.
Que estranho! Sinto
que eles agora estão a encher uma mochila de uma grande responsabilidade. Vão
pôr-me o saco às costas. Sou o transportador das palavras daquele livro, tenho
de as entregar de porta em porta. O alforge é pesadíssimo mas não lhe sinto o
peso.
Ainda não estou
muito certo do que faço neste local, mas não me preocupo porque sinto-me
naturalmente à vontade.
O ambiente é neutro,
apesar das vertigens e eles não falarem comigo. Eles nem falam.
Agora que olhei
mais atentamente, eles não têm lábios. Afinal o que eu pensava serem plumas
antigas, são penas que lhes saiem dos dedos. O aparo é a unha do dedo
indicador. De repente o conforto desapareceu. Isto está a ficar esquisito.
Tenho a sensação
muito difícil de explicar a mim próprio, que estou aqui por uma razão particular aparentemente
importante, mas tenho dúvidas!
...
Estou cheio de
frio.
Estou deitado ao
lado de uma bíblia. Uma bíblia do meu tamanho. É o livro que os barbudos estão
a escrever. Sem respeito nenhum uns pelos outros, cada um escreve onde lhe
apetece, até por cima do que os outros escreveram antes.
São os Sábios, é
isso que eles são, nem se dão conta que eu estou estendido ao lado do livro dos
livros.
Aproxima-se agora
um homem com bom aspecto, com um indício de gravata a sobressair pela cor, da
bata branca que traz vestida. Parece-me doctor.
Enfia-me um tubo na boca e insiste para que eu degluta um líquido
vermelho escuro injectado à pressão por uma seringa de tamanho descomunal.
Faço o esforço de
engolir, mas o sabor agro e ferruginoso interrompe a minha boa vontade.
Ele insiste, começa
a chatear-me. Já não acho piada à gravata.
Sinto-me mal. O encosto
forçado da minha orelha direita sobre a Bíblia, começou por causar dormência e
agora transformou-se em dor. Dói-me o lóbulo da orelha!
Debato-me com toda
a razão, mas ninguém me atende.
Os barbudos agora
estão em cima de mim, escrevem palavras no meu rosto, o que dá comichão. O tubo
já não é um tubo, transformou-se num sifão de uma sanita colada na boca que não
me deixa respirar.
Vou asfixiar!
António José,Tozé
em núcleo restricto, desperta em sobressalto, húmido de suores, com a
respiração descoordenada, num escuro totalmente escuro . Está perdido e até
perceber que está sentado no lado certo da sua própria cama, passa momentos de
desnorte.
A mulher dorme
profundamente enroscada na posição de decúbito lateral. Tem uma espécie de
capacete na cabeça, com uns rolos metálicos que parecem uma central eléctrica,
para não descompor o penteado. O relógio despertador emite uma luz verde
exuberante – uma nave espacial pousada ao lado da almofada - dá horas a piscar,
que é a sua função e mantém-se sossegado no local expectável: a mesa de
cabeceira.
4 horas da
madrugada.
Tozé teve um
pesadelo. São cada vez mais frequentes. Todas as noites um sonho intrometido
aninha-se sem se fazer convidado entre os lencóis e ocupa todo o espaço da
cama. Pernas por cima dos inquilinos, empurrando, apodera-se do espaço com
solavancos incómodos para mudar de posição. Ressona alarvemente
Agora que
despertou, volta a marinar nos problemas da vida, que não são muitos: sempre
teve a minúcia de se preparar para uma velhice sem sobressaltos. Para além dos
prováveis - a próstata ou o cólon, lotaria nas mãos do sobrenatural – tudo
está arrumado na prateleira certa, e se tudo continuar a correr como planeado,
o resto da jornada será tranquila.
Tozé está reformado
das finanças. Há trinta e cinco anos conheceu a Angélica . Ela estava com
dificuldades em preencher os papéis do Imposto dos rendimentos. Na realidade
não era assim tão difícil colocar os números que se pedia, mas para lá chegar,
tinha um novelo de perguntas por responder que a deixavam baralhada.
Aqueles impressos
tinham sido propositadamente inventados para confundir a cabeça dos
contribuintes. Algum funcionário de Finanças anónimo e triste, de índole sadomasoquista,
fez dos impressos que inventou, o seu grito de revolta e deu o seu contributo
para a vida meio enjoada de quem se levanta de madrugada para ganhar lugar na
bicha e conseguir ser atendido na
abertura de portas.
Com a ajuda do Tozé
e o carimbo oficial nos impressos, tirou-se o passaporte para uma vida em
Massamá – nos primeiros anos num discreto apartamento alugado, depois com o
esforço dos remediados que poupam nos gastos, num empréstimo bancário a trinta
anos tornaram-se proprietários - dois filhos feitos doutores e bem
casados,com copo de agua e uma reforma simpática que sobra, para gozarem sem
preocupação de mercearia o inverno da vida.
E é no inverno,
quando faz mais frio, que os corpos se abafam de roupa e as almas, com
frieiras, procuram mantas e cobertores.
O casal Antunes
encontrou o seu porto de abrigo nas Testemunhas,
A religião de Cristo
vivida na infância ficou-se pelo caminho, mas os últimos anos trouxeram à
superfície a comichão da fé.
A congregação
tornou-se a sua família, assistem três vezes por semana às sessões do Salão do
Reino. Apresentam-se de fato e gravata e vestidos discretos. Cheiro a limpo.
Não há listas infindáveis de semi deuses para venerar e dar conta dos nomes, as
velas não se usam, nem preces para decorar. Leituras, só leituras partilhadas.
Estão todos ao mesmo nível e isso é uma benção tão difícil de encontrar nas
outras agremiações, desde a tertúlia da sueca
aos herdeiros do santo Graal.
Comentam em
conjunto os Escritos, sem pastores nem cajados. Este rebanho é autonomo, sabe
por onde caminha.
Pelas manhãs,
todas, Angélica ajeita o nó da gravata pálida do marido e tem a preocupação de
que a saia de tecido grosseiro não sobe a altura do joelho.
Comem torradas de
pão integral acompanhadas com chá preto - linha branca - num silêncio
concentrado, sentados na mesa da cozinha.
As bíblias são
arrumadas em duas capas de pele sintética, das que se põem debaixo do braço.
Levam ainda um stock de revistas “Sentinela” e ”Despertai”,
com uma tiragem gráfica quinzenal de 50 milhões de exemplares por esse mundo
fora.
Angélica dá os
últimos retoques de alinhamento na colcha de renda que fez no ano passado e que
cobre a cama do casal: “sabemos sempre como saímos de casa, mas nunca como
voltamos”.
Reina neste
apartamento suburbano um silêncio divino.
Sai-se ao
rodar da chave.
7h30. Boa hora para
evangelizar.
Estacionam os
corpos na entrada principal na estação de comboios da linha de Sintra.
Gente ensonada, com
pouca vontade de encarar o sentido de mais um dia, dirigem-se como autómatos
para a plataforma nº2, onde param os comboios para o Oriente e o Rossio.
As portadas de
acesso à plataforma abrem-se aos que têm passe válido. Outros aproveitam a
nesga para escapulir ilegalmente. Outros, saltam por cima das portadas e
resolvem o problema.
É assim a vida na
periferia de alguma coisa.
Comentários
Enviar um comentário