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AS PALAVRAS BELAS

  Não penso nunca na morte e fico contente porque o céu é azul. Consigo viver perfeitamente vadio porque fechei a clepsidra do tempo, no sótão de onde vivo. Esqueci-me dela e ando por aí, a juntar pequenos prazeres, para um dia, quando voltar a contar o tempo, poder ter a quantidade suficiente para ser feliz e cheio, antes mesmo de ter de pensar na morte. Até lá, pinto a manta, volteio, faço rimas que umas rimam e outras não, falo com as pessoas, e leio livros, uns melhores do que outros, alguns, sublimes. Não deixo nunca é de me admirar e nesses espantos que me caem no beiral dos olhos, e os chamo para dentro de casa, convenço-me de que poderei ainda vir a escrever o grande caderno das palavras belas, umas, que eu cá sei, mais minhas, porque são as minhas palavras belas. Cada uma tem a sua identidade, tem um passado seu e um carácter próprio. Umas são mais sociáveis, outras mais ariscas. Contarei a sua história como eu as vejo e conheço e espero, que a partir daí comecem a ser olhadas

UMA NOITE DE FADOS

O meu pai nunca foi a Figueiró dos Vinhos, muito menos a aldeia Ana de Aviz, nem eu tinha ido. No fim do seu caminho, passava longas tardes, numa pequena sala, com auscultadores nos ouvidos. Ouvia fado. Não incomodava ninguém, nem a minha mãe, e por isso, por não a incomodar, ela amuava considerando que era uma desconsideração, estarem os dois em casa e cada na sua existência, herméticos um para o outro, como se a vida das pessoas não fosse assim, cada um balançando-se no seu ritmo. Eu não compreendia nesse tempo o fado, mas compreendia o amor, talvez já um pouco demente, que ele tinha por uma canção, entranhada na alma e nos corpos das gentes de Lisboa, motivo das paixões mais violentas, e de desfechos trágicos, nos bairros mais pobres e decadentes. Era uma música que eu considerava melancolicamente triste, que me incomodava, sem saber explicar. Ainda não tinha chegado o meu tempo de gostar de fado. Hoje, ele já não frequenta essa sala, que de resto já nem existe, desfez-se nas po

A CHARANGA DOS CAVALOS BRANCOS

Apesar do alcatrão e de ser atravessado por viadutos, era e é um descampado grande, antes com ervas ao acaso, hoje ordenado, a mesma sensação pessoal de abandono, de frieza. O largo de Algés. Nesses tempos as ribeiras comprometiam-se com o mar e transbordavam nas épocas de chuvas intensas, transformando o largo num lago com objectos flutuantes. Ainda hoje é assim. Desse largo partiam algumas carreiras de autocarros que ligavam Algés a Lisboa, eram verdes. Os revisores picavam os bilhetes de cartão com cores a identificar as zonas, com um alicate, peça fascinante e à excepção de furar, completamente inútil. No campo do largo grande, ervas daninhas prosperavam, já foi dito. No calor intenso de alguns verões e levantando-se ventos, eclodiam pequenos incêndios, inofensivos porque não havia nada senão erva, mais ou menos rasteira para arder. Os miúdos do prédio amarelo, pousávamos os queixos de querubins, no bordo do muro que continha o pátio do prédio, onde vivíamos de manhã até à noit

O RESTELO DAS CASAS BRANCAS

Há ainda a dizer, que era um pequeno bairro de casas brancas, quase iguais, com pequenos jardins, alguns só com uma árvore, de fruto, e os miúdos do bairro, encenando heróis ou perdedores, “assaltando” os quintais alheios para colher uma peça que fosse, demonstrar a sua bravura e sinais de coragem, ganhando pontos na hierarquia do grupo. Bem precisariam dela, mais tarde, quando embarcaram para a guerra, defenderem o indefensável. Arbustos desenham os muros, não é tempo de jardins exuberantes e relvas caras, muitos menos piscinas, carentes de espaço e de utilidade sociológica. Algés apresenta-se do outro lado de uma avenida ampla que imita o rio que desagua à sua frente, quase a dar o último suspiro na linha da praia, onde ao longe se adivinha, com esforço na visão, um minúsculo farol, flutuando. Saindo dessa foz, por um cordão umbilical, que não se consegue cortar -filhos e pais e filhos, enrolados nele, sem desembaraços à vista, que permita liberdade de movimentos e um respirar

O SABOR DE UM BOLO HUMILDE

    A minha mãe era pastelinhos de nata, galões clarinhos e um palmo e meio. Sempre para mais e nunca para menos. Espalmado, como uma língua. A minha mãe também foi sogra, mas não fez uma relação directa nem de concordância com esse bolo humilde, de padaria, com o seu significado popular, de “linguaruda”, “falar do que deve e não deve, “dar palpites e meter-se na vida conjugal dos filhos”, como por exemplo diminuir as noras e os genros, porque os nossos meninos são imaculados e virginais. A “língua da sogra”, bolo, nunca teve grandes pretensões, pouco doce, com sabor realçado da canela que lhe dá a identidade, mais para o denso do que para o fofo, vendido nas padarias de bairro, já mal se encontra. Em tempos passados de eu ter sido criança, era uma recompensa de bom comportamento, e não havendo outras comparações a não ser com o bolo-rei mas esse era só uma vez por ano nas festas do Natal, a língua da sogra foi o meu bolo preferido, e mantive-me nessa ilusão até vir a conhecer e es

MUNDOS PARALELOS

É muito fácil de entender. É como o bolo mil-folhas, são as dimensões paralelas. Universos em camadas. Uma dessas camadas, de massa folhada, é a do admirável mundo das folhas de Excel. Nada de outro mundo, porque há mundo assim. Na casa do grande Bingo, com a marca Bing Bang , à medida que saem as bolas numeradas, os seres são direccionados para uma dessas camadas de mil-folhas existencial. Os das folhas de Excel, que desconhecem a existência de outros mundos, vivem obcecados com a quimera de construir a folha de Excel perfeita. Irrefutável, irrepreensível, cheia de “macro”, fórmulas infalíveis, cálculos sem erro. Como o bolo mil-folhas constitui-se de camadas finas sobre camadas finas, entremeadas por cremes ou doce, assim os mundos, por vezes comunicam, se bem que muito esporadicamente, e os habitantes de cada um desses mundos não vê nem percebe o que está a acontecer, porque não acredita na possibilidade dos mundos paralelos. Assim que o efeito desse contacto é sempre nulo. Ni

O BACALHAU DÁ-NOS TUDO

Nos manuais, talvez já mais do que ultrapassados, do marketing e das vendas, quando se queria identificar um potencial cliente para um produto, havia algumas categorias onde se podia colocar esse possível cliente. Uma delas era a dos “Aderentes rápidos”, aqueles que com pouca conversa, aderem imediatamente ao que lhes é proposto (esse tipo de cliente, não se julgue que seja em reduzido número, pelo contrário, de todas as classificações, é a que mais “aderentes” tem). O meu pai, em quase tudo, era um aderente rápido, tão rápido que muitas vezes ainda não o tinham doutrinado levando até ao fim o relambório, e já ele, estava a levar para casa o que lhe quisessem impingir. No seu manual imaginário, de como um pai deve educar o filho, no capítulo dos suplementos alimentares de alto rendimento e sucesso inquestionado, tinha à frente de todos os outros e com distância, o Óleo de Fígado de Bacalhau. Era bom para tudo, um superalimento, não precisava de argumentos científicos, era um dos