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O MEU DIA É O NOSSO DIA

Dizem que é o meu dia, o nosso dia. Devo aceitar. No entanto, não gosto de ser comemorado, nem ter um só dia que seja meu. Desejo-os todos, não para que sejam somente um bom dia de calendário, um simbolismo, mas para juntos, eu e todos, vivermos gloriosamente, intensamente, amando-nos, este espanto doce que é viver. E se querem saber, o meu dia, o meu grande dia pleno e cheio, foi quanto vocês germinaram, vivendo também para contar os dias, os vossos. Nesse momento irrepetível, compreendi a eternidade. Longe ou perto, colou-se a mim, a minha pele, a vossa companhia, a vossa cumplicidade, o nosso amor, e nunca mais passeei sozinho. Viva, pois, os dias infindáveis, o tempo ameno e a passagem pingante e compassada do tempo. A vocês!

FIGUEIRÓ DOS VINHOS E O FENÓMENO IRRESISTIVEL DO ENCANTAMENTO

 

A LIVRARIA E PAPELARIA ESPAÇO, lda. – em Algés

Teria os meus seis, sete anos de idade. Miudinho no entendimento da poeira das coisas complexas (talvez ainda permaneça nessa casa de partida), quando me fascinei por uma montra de uma loja, expondo livros, objectos que via pela primeira vez numa quantidade que não compreendi. Um quadro vivo, com dimensões e texturas, e muitas cores, umas intensas, outras esbatidas. Apaixonei-me, sé é permitido a um rapaz dessa idade apaixonar-se (deve ser, porque a paixão não é amiga da razão e um catraio de seis anos tem pouca razão). Pelos títulos dos livros. Nessa altura ainda não sabia que havia livros – alguns entre os melhores que já se escreveram – em que está tudo dito nos títulos que lhes dão, não merece o esforço desperdiçar momentos, com a dolorosa agonia das frases que se amontoam nas páginas, tantas vezes excessivas. Tempo perdido. No entanto e dando a sensação de que se procuram sempre compensações que restabeleçam a harmonia das coisas, há muitos livros que não deviam ter título,

A ZÍNIA

OS melhores croquetes da via láctea e arredores. Os rissóis de camarão igual. Eu não conhecia outros - nunca tive espírito científico -, pelo que estes ganhavam sempre, eram imbatíveis e deliciosos. No tempo em que se cozinhava em casa e os locais de venda de comida pronta a deixar-se comer ainda não sabiam que não tinham sido inventados, até mesmo os supermercados, que andavam na barrigas das suas mães, a Zínia era pioneira do pague menos e fique bem servido; leve a comida embalada e é só comer sem ter que se dar lume aos bicos de gás. Foi dos primeiros estabelecimentos a ter aquelas redomas de vidro com frangos espetados em fila, a andarem à volta como num carrossel de feira, neste caso para galinhas póstumas. Ganhavam uma cor rosada e não era pelo esforço de se afoguearem, mas ao fim de não sei quantas voltas que nunca as contei. Era por ordem de chegada de cliente, quando ainda não havia aquele sistema de senhas numeradas, uns mais espertos do que outros, ou com mais pressa d

PREFIRO NÃO FAZER

  Todos os dias, no minuto certo da hora certa, ele regista no relógio do ponto a sua entrada na repartição. A repartição de que se fala chama-se o Instituto das Boas Ideias, organismo que o governo criou, não que tivesse para eles sido uma boa ideia, mas porque, num recente discurso à nação, o primeiro-ministro, pressionado pelos jornalistas que não largam as presas - mesmo as inocentes - para se ver livre das críticas que sobre si recaiam, anunciou que convidaria todo o povo a enviar ideias boas (para uma entidade que o governo iria, para agilizar criar imediatamente), ajudando assim o governo a governar melhor e com maior cumplicidade dos seus eleitores. O senhor Aparício, que trabalhou desde catraio na função pública (entrou como moço de fretes, tinha ele os seus quinze anos), funcionário exemplar, transitou para este novo instituto, e estava orgulhoso disso. A sua função, fundamental, é de receber o correio das ideias e separá-las e colocá-las numa das três prateleiras na sua es

O SOUSA MARTINS

  A minha avó Maria das Neves foi uma mulher do seu tempo, supersticiosa e crente. Por via de dúvidas, assinou uma apólice que lhe cobria todos os riscos e danos, subscrevendo fenómenos animistas, espiritas e mágicos, ao lado de episódios de fé, produto acabado de uma igreja séria, com culto reconhecido e validado, deuses e santos com provas dadas e milagres devidamente reconhecidos por um colégio rigoroso e quase cientifico de clérigos com muita prática em reconhecer fenómenos milagrosos como episódios do divino, sendo por isso mesmo especialistas. A minha avó fazia promessas à estátua do Sousa Martins, no largo dos Mártires da Pátria, estátua essa que é o maior altar de Lisboa, em céu aberto, do culto do paranormal em versão português suave. Uma coisa é certa, se há tantos (vêm da província até) a colocarem à volta da estátua fotografias de entes queridos, pedidos em verso e em prosa escritos em tabuinhas, braços e pernas em parafina, cabeças em parafina, órgãos em parafina, alguma

O MOSTEIRO

  O nosso mosteiro é uma casa grande onde residimos os dois, em voto de desapego e contenção da palavra, a beleza ruidosa do silêncio. Eu sou o abade e o senhor Darwin é somente monge (fez votos há muito pouco tempo). Fazemos causa nossa cumprir com agrado essas regras monacais de simplicidade. Só nos Domingos e dias festivos, falamos um com o outro. Banalidades, para libertar espaço às palavras que se acumularam nas nossas cabeças durante a semana. Consomem-se nesses dias, alguns vernáculos, para limpar o palato da alma. Eu mais do que ele. Depois, em caindo de novo o palco da segunda-feira, voltamos aos nossos exercícios espirituais e afazeres místicos. Eu faço leituras em voz alta de Santa Teresa e a mística e o encontro de Deus, mas não sei se o Darwin percebe, ou estando com o focinho baixo e olhos semicerrados estará a rezar (rezamos em cântico gregoriano que é muito mais apropriado a uma comunidade intelectual como a nossa), ou mesmo a dormitar que o malandro às vezes deixa-se