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FOGACHO DE UMA MEMÓRIA

Seria uma catedral gótica, o silêncio, o som vago das lajes de pedra concordando em suster o peso enorme de todo o edifício, figuração alegórica, a terra que suporta o peso do céu; uma ausência de som que não é uma ausência de som, mas sim murmúrios; o ranger tímido do soalho de madeira antiga de não querer incomodar a harmonia da serenidade. Um miúdo rasgando o tempo de fim de tarde desse espaço quase religioso, miúdo irrelevante, estarrecido nessa sala vazia de outras pessoas, fascinado pela parede de livros que lhe parece assumir uma dimensão, precisamente, de catedral. Onde estão os da casa, não se sabe. O miúdo espera por alguma razão que será a de brincar, o seu amigo, o da casa, que pode estar nesse momento no quarto a estudar e por isso a sala está vazia e o miúdo experimenta essas sensações em solidão. Não se toca num altar, nem por curiosidade. Assim, ele olha, quer, mas não toca em nenhuma das lombadas que o atraem tão magneticamente. A pedir que sejam lembradas, esc

O PESO QUE AS PEDRAS PESAM

A verdade, seja o que ela for, é que sempre me senti embaraçado. Desde que tenho a noção clara de que penso autonomamente. Com o tempo e as etapas da vida, não consegui pacificar-me dessa sensação de corpo estranho, que está a mais, um grão obstinado que empena a engrenagem de funcionar convenientemente. Pode ter sido meu o equívoco, não terei entendido e reagi de formas inapropriadas. Acho que não. Eles não podiam ser mais diferentes: um, histriónico, a chamar a sua atenção cansativamente; o outro, intelectualmente árido. Os dois, cada um a seu jeito, sempre a esgravatarem vias para desmontar a ilusão dos sonhos alheios. A verdade, também, a minha verdade, é que eu não queria nutrir essa antecâmara de sentimento frustrado, ninguém quer. Todos ambicionam o seu contrário: o deslumbre, o fascínio ofuscante, a imitação do modelo, construir um pedestal em mármore valioso para os seus heróis, semideuses do nosso Olimpo privado. Essa pedra pesadíssima com o peso que pesa todo o mundo e

DIGO, NÃO DIGO

  Um dia, dá-me - ai se me dá para aí! – Dizer que gosto de ti, E não vai haver quem detenha o vento, A soprar essa palavra, Que mais do que uma ideia minha, É um sentimento que estilhaça,  Na emoção inadiável de gostar de ti, Dizendo sem pudor nem vergonha, Por aí - Ressoando ecos intermináveis -, Uma palavra redonda e cheia: TU. E ai de ti, Se não gostas também de mim, Que sim.

CONVERSAS DOS DOIS

  Bem que tentei! Sempre a pôr assuntos em cima da mesa, digamos assim. De todo o tipo e feitio. Por vezes, quando o achava distraído, meio adormecido, atirava-lhe com um tema para cima, a apanhá-lo desprevenido, podia ser que reagisse. Nada. Mudo e quedo. E eu que não compreendia o seu silêncio, a sua ausência de reacção. Estaria a desconsiderar-me? Seria uma soberba intelectual sua que eu não me tinha dado conta? Ou seria uma atitude estroina e diletante da sua parte? Talvez, gostaria de acreditar, mas tremem-me as pernas, já me emociono muito, que não é por nenhuma das razões que enunciei. Não responde porque não tem nada a dizer sobre esses assuntos. Considera-me bastante, estou em querer, mas não entra em polémicas, é reservado. De um formalismo que que chega a parecer um político a fazer-se credível. O que ele verdadeiramente gosta, é de me lamber e derreter-me quando me olha na sua forma que tem de olhar que me deixa o coração a mil e um quilómetros à hora. Realiza-se co

SAMARCANDA

Estudei na Madrassa , em Samarcanda. Filosofia. Dizem alguns que estudar essas coisas seca a alma. Talvez. Não tinha mais opções, não tinha habilidade para ser guerreiro e o comércio não era para mim. Ou a filosofia ou a religião. Esta, tentei, fui honesto, pareceu-me monótona. A primeira, construiu andaimes no meu pensamento. São tantas as questões que nos tocam. Cheio de dúvidas, mas cheguei aqui, inabalável, um amante razoável e leal da filosofia, e mantenho a fé no pensamento. Samarcanda era nesses tempos, uma encruzilhada cosmopolita. A Rota da Seda, e das especiarias, e afinal, de todos os bens e riquezas que as longas caravanas de camelos transportavam por milhares de quilómetros, sob o calor inapropriado dos desertos e a solidão dos homens, os condutores dos camelos, que não tinham outra família que as bestas e estas eles, pensavam ambos as mesmas coisas, seres sobreviventes, sérios, introvertidos. Nos dias que procuravam refrigério nesta grande cidade do mundo conhecido
  Flutua o teu olhar atento num lugar que ainda não conheces, Espana as poerias do caminho e de outros que já fizeste, Renova-te, E limpo, aceita o dia .

VERÃO

O prazer dos dias caldosos, lugares doces, caiados, andaluzes, Quando o calor pinga nos corpos, e nos convida a inacção. O gosto da ausência do tempo das obrigações, não ter nada de importante para fazer senão, Estar. Os olhos pousando em coisas fúteis: Um pássaro escondido numa árvore, uma pequena lagartixa aquecendo-se numa parede recebe o sol bárbaro nas horas do meio-dia, a formiga no carreiro. A sensação, forte e sem peso, dos ruídos do silêncio. Os grilos, solistas fundamentais; o zumbir da abelha laboriosa e incansável; o coaxar dos sapos no sapal; o som distante, quase mínimo, de pessoas que sussurram por trás do cenário. O som que não se ouve do silêncio. Os odores, Da brisa do mar, das flores, dos figos, do limão. Do pão acabado de fazer, ao pequeno-almoço. Do grelhador. A sensação refrescante na pele queimada, a água fria de um chuveiro improvisado no jardim. As conversas ao pôr do sol, enlaçadas com um generoso vinho branco.