Seria uma catedral gótica, o silêncio, o
som vago das lajes de pedra concordando em suster o peso enorme de todo o
edifício, figuração alegórica, a terra que suporta o peso do céu; uma ausência
de som que não é uma ausência de som, mas sim murmúrios; o ranger tímido do
soalho de madeira antiga de não querer incomodar a harmonia da serenidade.
Um miúdo rasgando o tempo de fim de tarde
desse espaço quase religioso, miúdo irrelevante, estarrecido nessa sala vazia
de outras pessoas, fascinado pela parede de livros que lhe parece assumir uma
dimensão, precisamente, de catedral.
Onde estão os da casa, não se sabe. O miúdo
espera por alguma razão que será a de brincar, o seu amigo, o da casa, que pode
estar nesse momento no quarto a estudar e por isso a sala está vazia e o miúdo experimenta
essas sensações em solidão.
Não se toca num altar, nem por curiosidade.
Assim, ele olha, quer, mas não toca em nenhuma das lombadas que o atraem tão
magneticamente. A pedir que sejam lembradas, escolhidas, que se desloquem do
seu lugar de habitação, um par de mãos a sopesar o objecto, a ler, ou se ainda
não se souber ler, a ver somente, apreciando a capa e todo o objecto, uma sensualidade.
E de seguida, abrir, calhe onde calha, a página que for em que se abriu o
livro, e comunicar.
Participar da companhia de um livro é
comunicar, estabelecer um diálogo, a dois.
O rapaz quase a ser adolescente e por isso
ainda com mais dúvidas, não resiste e concede-se o prazer de escolher um dos
livros da estante, e já que está ali, numa situação encalhada, na expectativa de
o futuro se desensarilhar quando o amigo aparecer e os dois forem jogar futebol
e serem felizes e eternos, decide-se pelo que mais lhe chama a atenção.
O livro, grande, pesado, não está escrito numa
língua que ele conheça, e mesmo fazendo o seu maior esforço, inflado da melhor
das vontades, não descodifica se não entender, vagamente, o segredo que guarda,
ajudado mais pelas ilustrações do que pelas palavras, enigmáticas palavras, não
acessíveis à sua compreensão.
No entanto, os símbolos são universais e
são representações honestas e voluntariosas da sopa de ideias. E o catraio compreende
isso, por intuição natural, por lastro próprio, e, desempoeirado e feliz, compreende
o símbolo olímpico, que está cunhado a relevo na capa do livro, e realiza que este
ilustra e fala de modalidades atléticas, que vêm do passado, porque as
ilustrações mostram homens e mulheres vestidos de forma estranha, que já não se
usa, e alguns, têm coroas de folhas de arbustos na cabeça, coisa mais estranha
ainda, mas que não lhes fica mal.
O rapaz cresceu, o tempo passou, essa
catedral já não existe e o silêncio já não é o mesmo. Nem o seu fascínio
natural e inocente, por nada, que se lhe apresente ao olhar, desfocado, húmido
e velho, tem o desfecho apoteótico daqueles tempos em que tudo era novidade e
ilusão.
Vem-lhe agora pelo ondular da memória, a
imagem daquele momento, daquele livro, daquele encantamento pelas imagens de
desportistas , heróis, deuses, quando toma atenção, que estava distraída noutras coisa,
no ecrã de televisão, e fica a assistir como um miúdo, a uma competição de
lançamento do dardo, e corrida, e salto, considerando que afinal, a quase nudez
estética dos atletas desse livro e as coroas que afinal eram de louro, é um
grande espectáculo que ele aprendeu de um livro, nesse dia longínquo e
esquecido, numa sala antecâmara de um
jogo de futebol na rua, até que o sol se despedisse e as suas mães se lembrassem
deles e os viessem chamar.
Esse livro também já não existe ou viajou
sem deixar sinais. O sumo sacerdote dessa catedral-biblioteca, assumiu tarefas
superiores noutras dimensões que são desconhecidas. O seu filho, o amigo do
rapaz curioso dos livros, deixou de jogar futebol, mas o miúdo não se conforma
com as sacanices do tempo e tem dias em que espera por ele com a bola debaixo
do braço.
Ilude-se que ele vai aparecer, que deixa o
que está a fazer, e que vão arranhar os joelhos, e chorar baba e ranho, e
diabos os levem senão chutam o mais magnifico golo alguma vez chutado e,
apoteóticos e com o orgulho a rebentar pelas costuras, dão voltas ao quarteirão
em gritos e pantomimices de crianças, e no final do dia, irmãos que são, sonham
que amanhã voltarão a fazer o mesmo, a marcar golos ainda melhores que esse.
São eternos porque o querem e não há quem
os demova dessa ideia.
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