Estudei na Madrassa, em Samarcanda. Filosofia. Dizem alguns que
estudar essas coisas seca a alma. Talvez. Não tinha mais opções, não tinha
habilidade para ser guerreiro e o comércio não era para mim. Ou a filosofia ou a
religião. Esta, tentei, fui honesto, pareceu-me monótona. A primeira, construiu
andaimes no meu pensamento. São tantas as questões que nos tocam. Cheio de dúvidas,
mas cheguei aqui, inabalável, um amante razoável e leal da filosofia, e
mantenho a fé no pensamento.
Samarcanda era nesses tempos, uma encruzilhada cosmopolita. A Rota da
Seda, e das especiarias, e afinal, de todos os bens e riquezas que as longas
caravanas de camelos transportavam por milhares de quilómetros, sob o calor
inapropriado dos desertos e a solidão dos homens, os condutores dos camelos,
que não tinham outra família que as bestas e estas eles, pensavam ambos as
mesmas coisas, seres sobreviventes, sérios, introvertidos.
Nos dias que procuravam refrigério nesta grande cidade do mundo conhecido
e por conhecer e que tanto fazia sonhar nas fronteiras longínquas, cidade das
especiarias, do comércio, das pessoas afáveis e da boa comida, homens e
animais, alimentavam convívio com desconhecidos. Uma Babel onde se falavam e
ouviam todas as línguas conhecidas e algumas secretas, só dominadas por alguns,
poucos, de seitas desconhecidas e subterrâneas. Era uma forma de passar o
tempo, gastar as palavras acumuladas nessas viagens sem gente, e também colher
informações sobre trilhos e as condições particulares do deserto, que não
parecendo, apesar da sua aparente monotonia, não é sempre igual, que o digam
olhos conhecedores que não o de observadores externos, turistas acidentais, que
podem construir belas poesias sobre o tema, mas na realidade não conhecem o
deserto nem os seres que o habitam. Têm ideias vagas e lugares-comuns.
O deserto é o grande lugar vazio mais preenchido que existe: por seres
esguios que se escondem ou protegem debaixo das areias, por caudais
subterrâneos de água de que não se dá conta, pelos camelos e as cabras e os
homens que nas cores pardas mal se dão a perceber, a não ser, vistos ao longe,
no cimo das dunas , o seu recorte a delinear os contornos de seres silenciosos,
eternos caminhantes.
O deserto sempre me fascinou, e por isso não resisti, parti um dia, era
inevitável, acompanhante de uma caravana de sal que se dirigia, a dias e dias
de distância, até à orilha do belo e refrescante mar. Por muito grande que seja
o deserto, se o caminhante for persistente e obstinado, tarde ou cedo, acaba
por encontrar o seu pequeno oásis, onde a frescura das folhas das árvores
fechadas em copa, como um chapéu de sol, o burburinho vivaz das águas da
nascente ou das pequenas ondas que dão à costa, e o doce cantar dos passaritos
de cores exuberantes ofuscantes e descanso na rebentação do mar, convida ao
descanso da grande viagem e a reconciliação com a vida e os seus episódios
menos claros.
Apesar de Samarcanda ser a cidade
onde cresci e me fiz homem e ser bela e ter tudo o que se pode esperar para
viver uma vida boa, eu precisava de saber como era o mundo fora dessa redoma
protectora de uma cidade que conhecia, até de olhos fechados, todos os recantos
e impasses.
Nas caravanas que atravessam os desertos todos os participantes têm a uma
função. Como não sou criador de camelos nem cabras, nem pastor, nem sequer
tenho nenhuma habilidade que a meus olhos seja útil ao quotidiano de uma
caravana, para ser aceite como viajante, propus às que estavam de saída que pagaria
com histórias, contando-lhes histórias, à noite, sob o escrutínio iluminado das
estrelas incontáveis da via láctea, frente à lareira tremeluzente dos ramos
ressequidos, na companhia de uma taça de chá bem quente. Aceitaram, e eu não
sei se fiz bem: não sei se sei contar histórias, nem tenho na memória boas
histórias. Assim, lembrei-me do livro das mil e uma noites e pu-lo no meu
alforge. Tenho todos os motivos para achar que vou ser bem-sucedido. Este livro
é encantatório, faz sonhar pequenos e grandes, tem palavras simples, para
embalar em bons sonhos os homens cansados de andarem todo o dia sob o forno
inclemente do deserto. Poucas são as vidas fáceis, levadas a brincar.
Parto amanhã, sinto-me de novo criança, na excitação que antecede uma
partida, para uma aventura no desconhecido. Esperam-me encontros inesperados,
episódios dignos de conto, descobertas surpreendentes. Ou não me espera nada
senão monotonia. Na véspera da partida tenho todas as esperanças e estou
irrequieto. Amanhã se verá o que o dia dá.
É bom partir, renovamos o sabor intenso de viver.
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