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Mensagens

SAMARCANDA

Estudei na Madrassa , em Samarcanda. Filosofia. Dizem alguns que estudar essas coisas seca a alma. Talvez. Não tinha mais opções, não tinha habilidade para ser guerreiro e o comércio não era para mim. Ou a filosofia ou a religião. Esta, tentei, fui honesto, pareceu-me monótona. A primeira, construiu andaimes no meu pensamento. São tantas as questões que nos tocam. Cheio de dúvidas, mas cheguei aqui, inabalável, um amante razoável e leal da filosofia, e mantenho a fé no pensamento. Samarcanda era nesses tempos, uma encruzilhada cosmopolita. A Rota da Seda, e das especiarias, e afinal, de todos os bens e riquezas que as longas caravanas de camelos transportavam por milhares de quilómetros, sob o calor inapropriado dos desertos e a solidão dos homens, os condutores dos camelos, que não tinham outra família que as bestas e estas eles, pensavam ambos as mesmas coisas, seres sobreviventes, sérios, introvertidos. Nos dias que procuravam refrigério nesta grande cidade do mundo conhecido
  Flutua o teu olhar atento num lugar que ainda não conheces, Espana as poerias do caminho e de outros que já fizeste, Renova-te, E limpo, aceita o dia .

VERÃO

O prazer dos dias caldosos, lugares doces, caiados, andaluzes, Quando o calor pinga nos corpos, e nos convida a inacção. O gosto da ausência do tempo das obrigações, não ter nada de importante para fazer senão, Estar. Os olhos pousando em coisas fúteis: Um pássaro escondido numa árvore, uma pequena lagartixa aquecendo-se numa parede recebe o sol bárbaro nas horas do meio-dia, a formiga no carreiro. A sensação, forte e sem peso, dos ruídos do silêncio. Os grilos, solistas fundamentais; o zumbir da abelha laboriosa e incansável; o coaxar dos sapos no sapal; o som distante, quase mínimo, de pessoas que sussurram por trás do cenário. O som que não se ouve do silêncio. Os odores, Da brisa do mar, das flores, dos figos, do limão. Do pão acabado de fazer, ao pequeno-almoço. Do grelhador. A sensação refrescante na pele queimada, a água fria de um chuveiro improvisado no jardim. As conversas ao pôr do sol, enlaçadas com um generoso vinho branco.

TOUPEIRAS

  Havendo ou não um túnel, curto ou comprido, onde a luz é escassa, quase trevas, e sem que se veja, se sente apenas que se caminha numa direcção que não se sabe, até que finalmente, depois de passarem todos os filmes e projecções dos anos que foram vividos, uma pequena impressão de luz, tão débil, que mal se pode acreditar, pode ser uma falha da visão, um erro, se avista a uma distância que não se calcula, se perto, se longe. Havendo o desfilar por ordem de um caos que se instala sem regra nem ordem, dos acontecimentos, episódios, histórias boas e más e indiferentes, datas comemorativas, datas de pesar, datas formais, datas por obrigação, relações e quebras de relações, laços fortes e que se desfizeram num soprar de brisa fraca, rostos, definidos, indefinidos, belos, alegres, sofridos, e as outras coisas todas, tantas ou mais talvez, as paisagens, as linhas de horizonte, o Ceu, o Mar, a Terra, os seres diversos e imprescindíveis. Havendo tudo isso e tudo o que se esqueceu, e que foi

AS MENINAS

  Nunca fui capaz de me cruzar com uma pessoa sem a cumprimentar. E elas também me saudavam. Não sabia, mas inventei-lhes nomes, não se pode tratar ninguém sem se poder nomear. Conhecíamo-nos. Eramos do sítio. Eu sabia que todos os dias a determinadas horas elas estavam nos mesmos lugares das mesmas ruas do meu bairro, e elas sabiam que eu passaria por essas ruas, miúdo tímido, a mal levantar o olhar ao olhar delas. Cada um de nós tinha os seus afazeres, mas nesse ponto eu não tenho a certeza de na altura, saber os afazeres delas. Teria talvez uma ideia vaga ao que se dedicavam, porque estavam ali, o que não me interessava, porque o que valorizava e valorizo, é a simpatia das pessoas. Nisso eramos fartos. Foram anos de convívio, em todas as estações do ano e na altura eram quatro, elas sempre nos mesmos sítios, eu, a passar por elas, para cima para baixo, nas ruas amplas do meu bairro. Os passeios eram desafogados e estavam pontilhados num alinhamento geométrico, por árvores de grand

O TIO FUNAMBULISTA

  O meu tio José era funambulista, mas a família não o sabia e mesmo sabendo, pelo nome, não iam lá, ao âmago, que é o significado que as palavras dão às coisas. Mesmo que o meu tio lhes explicasse, eles nunca iriam compreender como é que uma pessoa desperdiça uma vida equilibrando-se numa corda a não se sabe quantos metros de altura do chão. Para quê? O que queria ele demonstrar ao mundo, com essa atitude?  As irmãs pensavam que ele era limpa-chaminés, o que já era uma aproximação, mesmo que discreta, à sua verdadeira actividade profissional. Os cunhados, homens brutos e pouco instruídos, só falavam de futebol e mulheres. Como tal, temas como o do funambulismo não eram considerados nem tidos em consideração. Por isso, pouco ligavam a esse cunhado. Se lhe tivessem alguma vez perguntado, ele ter-lhes-ia dito que era um desafio de superação, que se tornou obsessivo com o passar do tempo. Que até tinha vertigens e medo das alturas, mas era uma pulsão mais forte do que ele e por isso insis

ESPARTILHOS

  Para quem estava habituado ao convívio frequente com o olho de vidro da minha tia Florinda e com as dentaduras postiças em banhos-maria nos copos de vidro, espalhadas pelas mesas de cabeceira das casas familiares, coisa que ao princípio me intrigava porque eu, os meus dentes, não os conseguia tirar nem pôr, os pequenos relicários com dentes minúsculos, avulso, e pequenas madeixas de cabelo, eram banalidades que mal prestava atenção. O que me assustava mesmo, mas a que não resistia de pregar o olhar e se pudesse a mão, era um relicário muito particular que uma irmã da tia do olho falso, tia, portanto, trazia sempre ao peito, pendurado num fio, supostamente de prata, em contraste com o seu semblante carregado, o rosto mais melancólico que eu conheci, o seu vestido negro, o lenço preto a apanhar os cabelos. Toda ela escuridão. Todos sabíamos o que continha e a história triste que lhe estava associada. Mas para mim era um impulso irresistível, um dia tinha que o possuir. Não havia forma