O meu tio José era funambulista, mas a família não o sabia e mesmo sabendo, pelo nome, não iam lá, ao âmago, que é o significado que as palavras dão às coisas. Mesmo que o meu tio lhes explicasse, eles nunca iriam compreender como é que uma pessoa desperdiça uma vida equilibrando-se numa corda a não se sabe quantos metros de altura do chão. Para quê? O que queria ele demonstrar ao mundo, com essa atitude?
As irmãs pensavam que ele era limpa-chaminés, o que já era uma aproximação, mesmo que discreta, à sua verdadeira actividade profissional. Os cunhados, homens brutos e pouco instruídos, só falavam de futebol e mulheres. Como tal, temas como o do funambulismo não eram considerados nem tidos em consideração. Por isso, pouco ligavam a esse cunhado. Se lhe tivessem alguma vez perguntado, ele ter-lhes-ia dito que era um desafio de superação, que se tornou obsessivo com o passar do tempo. Que até tinha vertigens e medo das alturas, mas era uma pulsão mais forte do que ele e por isso insistia. Era um lunático.
Estive com ele duas ou três vezes, nos meus primeiros anos de vida quando
não tinha ainda desenvolvido espírito crítico e para além do fascínio sem
explicação que nutria por ele, só muito mais tarde, vim a perceber a sua
declaração de princípios existencial.
Aparecia lá por casa feita a noite, quando não esperávamos ninguém. Entrava
mansamente, e não saia da câmara de entrada onde conversava sussurradamente com
a minha avó, saindo pouco depois. Eram estranhas as suas visitas. Ela nunca me quis
falar dele. A memória que tenho, é de um homem alto, magro, que andava dando
pequenos e subtis saltos, como se o chão estivesse a escaldar. Estaria a
treinar o equilíbrio na corda ou então, era um movimento entranhado em si, a
que não prestava atenção, mas para os outros, para mim, era uma forma curiosa
de pisar o mundo.
Só viemos a saber que ele era funambulista porque um dia caiu da corda e
uns senhores taciturnos e macilentos vieram a nossa casa, também à noite, dar a
notícia. Nas condições em que ficou, não lhe podemos perguntar nada sobre o seu
passado profissional e ainda tivemos que pagar uma coima por ele ter cometido
uma infracção, à ordem pública, naqueles tempos de vida normalizada e tépida,
em que os homens que se equilibravam nas cordas, eram encarados como
dissidentes.
À distância alongada pelo tempo, estou feliz por ter tido um tio
funambulista, uma ocupação excêntrica e original. Apesar de ter falecido jovem
deixou um admirador, eu, que o vê como um verdadeiro herói. Como não há
registos das suas actuações gosto de imaginar-lhe momentos de glória,
atravessando cautelosamente – todos os cuidados são poucos - o grande vazio da
praça do Comércio, com os transeuntes cá em baixo a olharem incrédulos e os
funcionários públicos e os senhores directores e os senhores ministros, nas
suas respectivas janelas, umas maiores do que outras, boquiabertos, a mandarem
os amanuenses chamar as forças da autoridade, para impor a ordem e o respeito,
que isto é gente séria. Pobre, mas séria. São indivíduos panfletários, como
este, que deitam a nódoa em pano imaculado.
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