Para quem estava habituado ao convívio frequente com o olho de vidro da minha tia Florinda e com as dentaduras postiças em banhos-maria nos copos de vidro, espalhadas pelas mesas de cabeceira das casas familiares, coisa que ao princípio me intrigava porque eu, os meus dentes, não os conseguia tirar nem pôr, os pequenos relicários com dentes minúsculos, avulso, e pequenas madeixas de cabelo, eram banalidades que mal prestava atenção. O que me assustava mesmo, mas a que não resistia de pregar o olhar e se pudesse a mão, era um relicário muito particular que uma irmã da tia do olho falso, tia, portanto, trazia sempre ao peito, pendurado num fio, supostamente de prata, em contraste com o seu semblante carregado, o rosto mais melancólico que eu conheci, o seu vestido negro, o lenço preto a apanhar os cabelos. Toda ela escuridão. Todos sabíamos o que continha e a história triste que lhe estava associada. Mas para mim era um impulso irresistível, um dia tinha que o possuir. Não havia forma de conseguir e sempre que a visitava ou ela a nós, consumia-me em estratagemas para lhe deitar a mão. Numa ocasião, que por alguma razão e estando eu na sua casa, ela tinha saído, uma criadita complacente e excelente pedagoga (isso seria outra história), deixou-me entrar nos aposentos da tia e foi como se tivesse entrado na gruta de Ali babá, cheia de tesouros e ofuscantes brilhos. Como sou metódico, dediquei-me à prospeção e inventário daquele gabinete de curiosidades. Era toda uma coleção de relicários e ex-voto de santos e santinhos, com rezas e preces e encomendas de todo o género e feitio, das almas, das almas penadas, da entrada nos portões de São Pedro e de como se lhe dirigir, de recuperação e milagres de maleitas de fora e de dentro do corpo, maus-olhados, exorcismos, possuimentos vários, purgas e purificações dos objectos, dos mais pequenos até às grandes superfícies. A tia era muito religiosa, mas não imaginava que ela tinha todo esse acervo que certamente lhe seria útil no além, porque eram créditos ganhos em vida. Eram tantos que sendo eu ainda miúdo, não tinha suficiente conhecimento de números para contar todas as peças catalogadas. Aquilo era um mundo de oportunidades e de desafios à minha imaginação, já que a minha melhor competência – só o meu irmão me ultrapassa – sempre foi reinventar e recriar histórias com a quantidade de material que a vida nos põe à frente, no quotidiano, basta andarmos atentos, ou tropeçar nas coisas e desenvolver o gosto pela efabulação. Para além daquelas relíquias da área místico-religiosa, a grande descoberta foram uns objectos, que à primeira vista achei serem de tortura (mas por que razão a minha tia, tão temente e pura, haveria de ter objectos de tortura?) e que não lhes encontrei finalidades e uso, apesar de ter feito toda a experimentação que os meus métodos científicos exigem. Refiro-me aos corpetes e aos espartilhos, objectos complexos e verdadeiramente encantadores. Os espartilhos então, com a sua estrutura rígida e com aquele sistema de laços de apertar, era para mim, um magnifico utensílio de tortura e padecimento. Se me dissessem que era um sacrifício a favor da beleza, diria que era uma insanidade, mas nessa fase da vida e crescimento ainda não estava em condições de apreciar as linhas sinuosas e marcadas de um corpo de mulher. Após a revelação desse dia e nos tempos seguintes, a descoberta destes artefactos nas casas alheias, passou a ser o foco da minha atenção. Não foi nesse dia que tive no concavo da minha mão esse relicário tão precioso à minha tia: uma fotografia a sépia de um jovem vestido de militar. Meu primo, seu único filho perdido dessa maneira tão fútil, morto sem saber porquê - nas guerras mata-se e morre-se sem se saber porquê, o que as torna ainda mais absurdas – e dentro da pequena caixa os primeiros dentinhos, a primeira muda de cabelo, a anunciarem um futuro tão longo e feliz, mas quase todos os futuros não são nem gloriosos nem prazerosos, são inúteis, acabam todos em nada. Entretanto cresci, e com o passar do tempo tenho vindo a perder a curiosidade. Poucas coisas me deram tanta alegria e a plenitude como a descoberta dos corpetes e dos espartilhos. Sobre os relicários já não digo o mesmo, são desinteressantes e tristes. A minha tia estará agora a gozar os prazeres do paraíso, junto ao seu filho, ou é só pó que cobre as coisas, e esse colar com a fotografia e as provas físicas de ele ter existido, perdeu-se numa camioneta de mudanças ou num caixote de lixo, extraviou-se essa memória e o interesse que despertou. Fruto das partilhas e por escolha vim a herdar um espartilho, que tenho como obra de instalação artística numa das paredes do meu quarto, a habitação que acho mais adequada a uma exposição recatada e intima de um objecto dado a contemplações recolhidas e muito pessoais.
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