Nunca fui capaz de me cruzar com uma pessoa sem a cumprimentar. E elas também me saudavam. Não sabia, mas inventei-lhes nomes, não se pode tratar ninguém sem se poder nomear. Conhecíamo-nos. Eramos do sítio. Eu sabia que todos os dias a determinadas horas elas estavam nos mesmos lugares das mesmas ruas do meu bairro, e elas sabiam que eu passaria por essas ruas, miúdo tímido, a mal levantar o olhar ao olhar delas. Cada um de nós tinha os seus afazeres, mas nesse ponto eu não tenho a certeza de na altura, saber os afazeres delas. Teria talvez uma ideia vaga ao que se dedicavam, porque estavam ali, o que não me interessava, porque o que valorizava e valorizo, é a simpatia das pessoas. Nisso eramos fartos.
Foram anos de convívio, em todas as estações do ano e na altura eram
quatro, elas sempre nos mesmos sítios, eu, a passar por elas, para cima para
baixo, nas ruas amplas do meu bairro. Os passeios eram desafogados e estavam
pontilhados num alinhamento geométrico, por árvores de grande porte, cujas
copas se espraiavam sem contenção de espaço, havendo luz suficiente para todas
poderem processar as suas sínteses vitais. Não havia prédios, só grandes casas
senhoriais cercadas por belos e compostos jardins, cheios de cor e aromas que
perfumavam o ambiente muito particular e íntimo desse bairro na quase periferia
da cidade. Durante o dia havia pouco tráfego, os homens de família saiam de
manhã nos seus carros com chauffeur ou não, e só voltavam ao final do
dia, pelo que as ruas, praticamente desertas, a não ser os leiteiros que
deixavam as garrafas de leite alinhadas às portas das casas e os marçanos que
faziam as entregas dos pedidos das mercearias, eram conquistadas pelas crianças,
que fazíamos nosso esse espaço que parecia infindável, brincando as
brincadeiras dos rapazes, as meninas nas suas, danças e saltos de corda e
elásticos, esvoaçantes meninas, cantilenas em coro e uníssono, falando entre si
muito juntinhas, cabeças juntas, como a contarem segredos.
Era uma bolsa de liberdade, num mundo compartimentado e com as gavetas
fechadas. Liberdade a nossa e a delas, dessas senhoras, sem convenções, desobedientes
das normas, provocadoras, que esperavam pacientemente pelos carros que estacionavam
à sua frente, convidando-as a entrar ou não, depois de comerciarem a prestação
de serviços.
Tive e tenho uma grande consideração por elas e guardo essa memória
agradável, de belos rostos de jovens mulheres, na flor dos seus anos, algumas
já marcadas pelos ferros imperdoáveis e ardentes das inclemências do tempo, que
a ninguém nada perdoa, menos a quem anda na rua a fazer pela vida.
O meu bairro conservador e morno, ganhava exuberâncias com a sua
presença e a autoridade incomodava-as pouco, talvez porque alguns dos homens
senhores daquelas casas grandes, as tinham em estima, tanto como nós miúdos que
jogávamos à bola no meio da rua, e elas, encostadas a uma árvore, sentadas num
banco de passeio, ou simplesmente de pé, se animavam com os nossos ruidosos
golos na balizas delimitadas no asfalto pelas camisolas amarfanhadas para darem
volume, batendo palmas, assobiando e atirando um que outro vernáculo, linguagem
encantadora, para nós, meninos de família a brincar aos bons selvagens.
Agora são embaixadas, carros estacionados em cima dos passeios já não
tão largos, policias enfiados em casinhotos nas esquinas, mulheres e homens,
fazendo filas obedientes para assuntos consulares.
As crianças barulhentas e felizes abandonaram o bairro.
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