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Mensagens

DERVIXES RODOPIANTES

  Que nome dar a uma espécie de chapéu cónico, possivelmente em feltro, sangue de boi. Faz um efeito pouco comum mesmo que misturado anónimo, na multidão apressada num qualquer dia, numa qualquer rua central de uma cidade. Não só pelo que sobressai desse barrete hirto, que se vê uns bons centímetros acima do nível mais ou menos consistente das cabeças dos transeuntes, mas também por fazer um efeito incongruente, deslocado do sitio certo, sitio esse que se desconhece a morada. Em si, são dois chapéus, lado a lado e vão numa das direcções possíveis da rua, para baixo ou para cima, neste caso para baixo, rumo ao centro. Entram num edifício com uma fachada banal. No interior, pode ser tudo: escritórios, habitações, uma escola profissional, uma agremiação, um local de culto, sóbrio, sem pretensões de massas. Os dois homens que vestem os chapéus cónicos, estão de costas e dão a sensação de serem ainda jovens, pela forma como andam. Entram por uma porta não identificada. A porta preta, mate,

A ALDEIA DAS CASAS BRANCAS

  É uma casa em nada diferente das outras, poucas. Caiada a branco, as janelas e a porta com molduras amarelas. No espaço da porta, que em princípio é de madeira, está posta uma cortina de tiras de plástico de cores esbatidas. Protege dos insectos, também eles indolentes, subjugados pela intensidade do sol. Dentro, a sala, semi-escura, de paredes deslavadas, com a sujidade acumulada do tempo e das histórias a que assistiu ou não. Existe um balcão corrido a toda a largura da sala, em madeira, escurecida como a falta de luz suficiente que evita este espaço. Duas ou três mesas e cadeiras em fórmica. Atrás do balcão no que se pode chamar uma prateleira, copos para servir vinho e outros, pequenos, sinos, de bagaço. Uma máquina de café, uma peça histórica, já não funciona com certeza. Ainda atras do balcão, só visível a quem esteja encostado a este, uma pequena mesa forrada com uma toalha de plástico com flores, um candeeiro com fios de uma teia de aranha, um caderno com linhas, vazio, um l

QUANDO EU LIA PARA BORGES

  Ofereci a minha voz à sua cegueira. Laboriosamente, não contei os dias, li trechos, livros inteiros, da sua biblioteca pessoal. Todos os dias à mesma hora, não perdoava atrasos apesar de o dar a entender de uma forma muito britânica, a chegar a irritante, nesse polimento que se percebe tão bem que por trás, está um momento fervente de raiva, nos bastidores de uma figura impávida, a fazer-se desprendida nesse hábito por vezes tão exasperante de os britânicos se fazerem educados para os outros. Era o número seis, habitado por três humanos, um gato, e todo o universo compactado numa casa a meia luz, que dava a sensação de ter estado sempre ali, desde o princípio dos tempos, dando vida e morte e continuidade aquela família. Dona Leonor, mulher velhíssima a atingir os cem anos, a empregada igualmente velhíssima de toda a vida, uma gata branca ou preta, não cheguei a saber, e ele, impávido, com o seu fato de bom corte, escuro, risca de giz, sentado num sofá puído, o seu sofá, as mãos apo

O TIGRE DE BORGES

  Pe rdi a contagem do tempo em que estive prisioneiro naquela gruta insalubre cuja localização exacta não consigo identificar. Eu, um amante de mapas e cartas marítimas. Tudo aconteceu num ambiente estranho. Sonhos embrulhados noutros sonhos. Perde-se a noção do tempo e dos pontos cardeais. Sonhos obsessivos, intensos, imersão numa híper-realidade. Episódios diferentes, todos com o mesmo tema. Os nomes de Deus. Que nomes tem Deus? Li algures, há um tempo que não pus na cronologia das coisas importantes que assinalo nos cadernos, que se se conseguir fazer todas as conjugações de palavras de todos os idiomas que existiram, existem e virão a existir, chegaremos aos nomes de Deus, e ao pronunciá-los, abrimos os portais dos seus ouvidos, e poderemos falar com Ele, vindo a solucionar e resolver nessa conversa, todos os mistérios acumulados na memória dos homens. Muitos antes de mim, mais sábios, investigaram estas pistas, procuraram os nomes de Deus, que se podem encontrar em todos os la

A AVÓ ANALFABETA COMPROU UMA BIBLIOTECA E ESCOLHEU BEM

  Ela não sabia escrever, não quis aprender e mais tarde já não achou necessário. No entanto reconhecia a importância de saber ler e de escrever, mas não era para ela, e ria-se. Bastavam-lhe as palavras que vadeavam na sua cabeça e as que se escapavam para o espaço público nas conversas ou nos monólogos que fazia com os botões. Nunca folheou um livro, mas não tinha nada contra o objecto em si, que achava interessante. Revistas sim, via, porque têm fotografias e vendo-as podem-se imaginar histórias. Reconhecia o poder que se tem em saber ler um livro, ganha-se conhecimento das coisas. As coisas que ela conhecia chegavam-lhe para ser feliz. Sabia que para ele os livros eram muito importantes. E como ele era a substituição do filho morto prematuramente num país que só conhecia o nome , seu mais que tudo, investia as pequenas poupanças da gestão familiar apertada - apesar de analfabeta os números e as contas não a levavam por ingénua -, em livros, que ele escolhia na livraria do bairro e

O MEU TIO QUE ERA ANJO

  A ideia mais nítida que tenho dos anjos é uma fotografia de época: os meus avós, a minha mãe com uns lacinhos a rematarem os totós perfeitamente simétricos, e o meu tio, uns treze anos. O seu rosto irradiava uma luz que eu só posso qualificar de luz pura de um anjo. Depois dessa fotografia, nunca mais vi nenhum. Este meu tio, só estivemos juntos em carne e osso uma vez - apesar de ter sido o meu padrinho espiritual -, quando veio gozar férias da guerra colonial, à metrópole. Eu teria uns quatro anos. O seu rosto não aparece na memória desse episódio, só um passeio de carro eléctrico, um revisor com uma farda interessantíssima, o alicate pica-bilhetes, mais interessante ainda, e o bivaque militar do meu tio, fonte de toda a minha restante atenção. Se soubesse teria olhado para ele com detalhe, para o captar para mim, meu anjo: um bivaque e um alicate não mereciam essa transferência de interesse, mas uma criança tem os seus pontos fracos e eu claudiquei. Quando cumpriu a sua obrigaçã

O TIO NADADOR

  O meu tio, sempre que se aproximava de uma extensão de água maior do que uma poça, atirava-se a nadar. Aprendeu sozinho. No cais onde amaravam os hidroaviões da PAN AM, nos idos anos quarenta do século passado, mar da palha, que tem esse nome dizem os antigos por ser um mar raso e nos dias de sol intenso reflectir os seus raios dando a sensação de ser um mar da cor da palha. O tio aprendeu a nadar por erro e tentativa, no Beato. Teve sorte, a água que engoliu em vez do ar, não o asfixiou e ele, que era esperto e pensava bem, analisou racionalmente os erros, emendou os movimentos, a ponderação sem pânicos da respiração adequada, a flutuabilidade do corpo, que só se consegue com desprendimento, e, sem desistir, um dia deu-se conta que estava a nadar perfeitamente como se fosse um peixe sem barbatanas. Sem equívocos nem enganos. Como nunca fumou, nadava muito e tinha folego, tanto que se não fosse interrompido, nadava sem parar. Atravessou várias vezes esse rio, ou mar interior, até Alc