Ela não sabia escrever, não quis aprender e mais
tarde já não achou necessário. No entanto reconhecia a importância de saber ler
e de escrever, mas não era para ela, e ria-se. Bastavam-lhe as palavras que
vadeavam na sua cabeça e as que se escapavam para o espaço público nas conversas
ou nos monólogos que fazia com os botões.
Nunca folheou um livro, mas não tinha nada contra o objecto em si, que achava
interessante. Revistas sim, via, porque têm fotografias e vendo-as podem-se imaginar
histórias. Reconhecia o poder que se tem em saber ler um livro, ganha-se conhecimento
das coisas. As coisas que ela conhecia chegavam-lhe para ser feliz.
Sabia que para ele os livros eram muito
importantes. E como ele era a substituição do filho morto prematuramente num país que só conhecia o nome , seu mais que tudo, investia
as pequenas poupanças da gestão familiar apertada - apesar de analfabeta os
números e as contas não a levavam por ingénua -, em livros, que ele escolhia na
livraria do bairro e ela depois ia pagar. Era a sua pequena herança, a riqueza
que lhe deixava, em lombadas que se chamavam Eça, Aquilino, Camões, Cervantes,
Amado, Zola, Saint-Exupéri, Camus, Twain, Steinbeck, Huxley, Vian, Mishima,
Yourcenar, Dostoiévski, nomes que assinavam os primeiros livros, as fundações
da sua biblioteca pessoal.
Ela reservou-se o papel importante de guardiã
da herança: arrumava-lhe os livros quando ficavam por cima da cama, numa
cadeira, por aí. Arrumava-os nas prateleiras pegando com mil cuidados, e
colocava-os nos seus sítios certos por ter memorizado visualmente o lugar dos
livros, quando o observava às voltas na sua biblioteca. Limpava o pó como se
fossem os objetos mais valiosos do mundo expostos em lugar de destaque e eram.
Com muita pena sua, ficou pelo caminho quando esgotou o tempo de estar entre os vivos. Com pena por ter de abandonar o seu menino e porque nos enchemos de preocupações por irmos mais cedo e deixamos os que ficam e amamos desamparados de nós. Não assistiu ao futuro dele, que imaginava seria brilhante. Onde agora reside, continua a arrumar, na cabeça do neto, os livros que ele lê e os que ele escreve, entretendo a sua eternidade até que os dois se voltem a reencontrar e ele a saciar-se com aquele sorriso único e cheio, da sua avó analfabeta que o ajudou a amar os livros.
E entretanto, enquanto vindimou o tempo, o tempo
dos que aqui se falam, o Eça e os amigos, convidaram outros para o convívio e o
neto teve que aumentar a dimensão da sala para poder receber os que se
juntaram, muitos e bons. Grande herança que a avó lhe deixou.
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