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Mensagens

MANIPULADOR DE MARIONETAS

  * Encostados aos parapeitos das janelas, uns com a cabeça de fora, uns esticando a cabeça o mais que podem, pequenos, apoiando os queixos nos beirais para se aguentarem, uns mal se vendo os olhos, inchados de curiosidade, a saltarem das órbitras se puderem, ávidos para assistir ao que se passa, não vá caírem das banquetas onde equilibram os bicos dos pés, e perderem o lugar privilegiado. Todos a querer ver, ansiosos por serem os primeiros, para depois contarem aos outros que viram: estavam no local certo, à hora certa, a ver, são uns heróis. Ver a todo o custo e preço, mesmo que para isso se chegue à agressão, aos empurrões para desequilibrar os que estão no poleiro, e ocupar os seus lugares nos parapeitos das janelas. Querem assistir ao espectáculo, ao miserável entretenimento das misérias dos outros, uma projecção – que recusam a subscrever - das suas. E é tudo entretenimento, o que se passa na rua. Babam-se para assistir, serem meros espectadores, da vida a passar com os seus cort

A ILHA DE ÁCALA

  Homens e mulheres salgam peixe e fabricam garum , condimento apreciado. Cá fora, na orilha da água verde e pacífica, um areal dourado e seguro, duas crianças brincam com conchas e seixos, inventando mundos e utopias. Porque são crianças e brincam, estão abstraídas. No final da praia, pescadores curtidos, enrugados por sóis intensos dos dias passados assim, estão sentados nos passadiços do cais palafítico, reparam as redes. Partem logo, ao cair da noite. Está lua cheia, augúrio de boa pescaria. Alguém os visse no mar e seriam pirilampos, no efeito do piscar das velas de parafina batidas pelas brisas, que iluminam esparsamente as embarcações, ajudando as manobras, ou é para se sentirem mais seguros. Luz é vida,   Enquanto brincam, as crianças não sabem que do outro lado do mar feito do estuário de um rio, o sado, também há pequenas aldeias de pescadores e grandes produções de sal, a sementeira do mar. Na fábrica, que alimenta o império romano até aos seus confins e terra incógnita, a

O PARTO DIFÍCIL

  A mãe contava inapropriadamente, animada e não se poupando a arrebites - deixando-o embaraçado quando assistia, vá-se a saber as vezes que ela o contava sem a sua presença -, que o parto tinha sido difícil e de desfecho quase fatal, neste caso para ela, que assim tivesse acontecido não o poderia contar a ninguém e morreria com ela. Ela a encaminhar-se para o além esvaindo-se em sangue, ele sem respirar, muito tempo, arroxeado já, até que lá se deu autorização à vida, para aproveitar essa oportunidade, a de viver, uma lotaria que calha na conjugação dos astros e dos búzios, a poucos. Todos sobreviveram e a história acabou bem. Tenha que efeitos tivesse tido essa anoxia no seu futuro e em situações bem específicas em que precisava do oxigénio todo para decidir o melhor, a ideia atroz e muito injusta, de ter sido quase o responsável pelas perdas anormais de sangue da sua mãe, fizeram-no como se veio a fazer nem muito nem pouco encorpado, o suficiente. Do que não se livrou foi de uma t

CEREJAS

  As nuvens no verão são fiapos, algodão doce, e protegem os homens do sol, excessivo. O sol, energiza os corpos e bronzeia-os. Aumenta a estima pessoal. Os corpos aproveitam as condições postas à disposição, para serem felizes. A felicidade é um banho reparador e nem sempre está ao virar da esquina. Ninguém no seu juízo se encosta numa esquina a ver passar o tempo. Aguda, cortante. O tempo é um amante infiel, sempre com expectativas, que depois não cumpre. Como por exemplo, deixar passar, esgotando-o a olhar para as nuvens como se não houvesse mais nada para fazer. Em não havendo, instala-se a preguiça, meio caminho andado para se desatar a pensar nas nuvens, nos fiapos, na cor do céu, e pôr-se para trás das costas, o siso,   que juntamente com o bigode retorcido nas pontas, são sinal de respeitabilidade. O siso é de uma lúcida inutilidade quando se trata de fiapos de nuvens, mas olhar para o céu vale sobre tudo o que venham a dizer de nós.

O ESSENCIAL

  Um dia novo. A luz. Calor e frio. A chuva. Todos os significados do tempo. Curiosidade. Imaginação. O desconhecido e o mistério por resolver das coisas e dos seres. Um sorriso. Um rosto. Perfume. Flores. Todas as árvores e a floresta. As dunas do deserto. Uma montanha. O mar, as ondas do mar, as cores do mar. Estar deitado numa praia a ouvir o som da rebentação das ondas. Estar deitado num campo relvado a ouvir a silenciosa conversa das árvores. Todos os azuis do céu mesmo quando são cinzentos. O chilreio dos pássaros, o que eles dizem. Zumbido das abelhas. Todas as borboletas e o seu efeito. A beleza incomum das corujas. Um gato deitado a dormitar deitado sobre nós. O olhar de um cão. Dar as mãos. Um beijo, muitos. Comida de conforto. Um bom copo de vinho tinto. Ler, estar aqui a escrever, todos os livros, uma biblioteca. O cheiro dos livros. A noite, um céu de estrelas. A nostalgia do passado, uma tristeza suave. Melancolia. A música, a voz humana. O som do violoncelo. Planear uma

O HOMEM QUE SE DISTRAI A SONHAR O RIO

  Está sentado na forma simples que os hindus têm de se sentar. Na India tudo é yoga, até a miséria absoluta e o fedor da morte ao virar dos cantos. O homem olha para o rio, calmo, meio-adormecido parece, nas horas quase paradas do meio da tarde. O calor é intenso e seco, outro homem não o aguentaria. Está habituado. Descansa do trabalho sem fim, uma escravatura dir-se-ia, mas não, é uma libertação. A Ilha onde este homem está sentado à beira do rio que se chama Brhamaputra e é um dos grandes rios da Índia onde tudo é muito, extenso e grande, está a desaparecer. Os homens demasiados homens que vivem nela, esgotaram os seus recursos. É sempre assim, depois queixam-se mas voltam sempre a pecar. Este é diferente. Não tinha com que entreter a miséria em que vivia e pobre por pobre em vez de ficar sentado a estender a mão a nada, escolheu plantar árvores. Na sua Ilha de Majuli. Começou essa mendigagem em 1979 e já plantou 341 hectares, de uma floresta tão bonita que voltou a receber ele

A GRANDE MURALHA DE ÁCACIAS

  Podendo a vista ser desimpedida, fazem muros para a tapar, aprisionar os seus horizontes a uma parede, a delimitar um território, tenha a extensão que tiver. Constroem-se muitos muros, cada vez mais altos. De betão, de ferros, de pedras sobrepostas. Estando a vista aprisionada, macambuzia, definha, desiste. Quem faz os muros finge que não sabe, mas não os faz para se defender do que fica fora deles, fá-lo para se defender de si próprio. Se pudesse ver-se, quando se olha ao espelho, cairia em si, de vergonha e perceberia de uma vez por todas que os muros são desnecessários e infelizes. Todavia, nem todos os muros são inúteis. Homens com esperança, milhares deles, puseram-se a construir um muro feito de árvores. São acácias, árvores fortes, de crescimento rápido, que aguentam as inclemências do tempo e de poucas águas. Esse muro, quando estiver terminado, e falta pouco, terá mais de sete mil quilómetros de comprimento. Imagine-se, um muro assim, o maior de todos alguma ve