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O HOMEM QUE REINVENTOU A ESPERANÇA. ROTEIRO DE UMA CIDADE LIVRE

  Noite agradável. Na parada militar, perfilados, aguardam. Ouve-se Grândola, Vila Morena num radio que amplifica o som da fraternidade nas paredes que envolvem a parada. Duzentos e quarenta homens, saídos de serem meninos, comandados por um oficial com 29 anos, sorriso rebelde, olhos curiosos, partem para Lisboa. Vão libertar a liberdade. No Campo Grande, à cidade universitária, cinco da madrugada, a coluna para nos semáforos. Vão fazer uma revolução e param nos semáforos. Às 05h45, tomam posições no Terreiro do Paço. Forças do regime defendem os ministérios. O jovem capitão, sente na cara tensa, carregada de adrenalina, o afago da brisa fresca que vem do rio, a dar-lhe confiança. Vai nascer um dia luminoso. Na concentração que tem em si, não ouve as gaivotas pousadas no Cais da Colunas. Dão-lhe boas-vindas. Dizem para não ter medo. Não era preciso dizerem, este homem não tem medo. O Terreiro do Paço é o eixo de um império irreal. Onde estão os ministérios, onde o regime sonha a

DA JANELA

  Uma janela. De um lado desta, uma mesa, cor de mel. Um caderno pautado com linhas azuis, uma mão que orienta a caneta de aparo, escreve palavras, umas seguidas das outras. Quem comanda a mão, ou julga que a comanda, olha a intervalos pela janela, para fazer uma pausa. Do outro lado do vidro não tem uma vista ampla. Vê uma fachada de um prédio cor-de-rosa, metade de outro amarelo, o telhado de ambos, e janelas. Várias. Vê também um pedaço de céu, não muito. Durante o dia todas as janelas são quadrados negros. Não se vê nada para dentro delas. É possível que alguém, protegido pela sombra, esteja a olhar também através da sua janela. A olhar para este lado de cá e verá outras janelas idênticas num prédio amarelado, uma linha de telhado e uma linha de céu. À noite quando acendem luzes, candeeiros, as janelas ganham vida, pode-se ver para dentro delas. É como se projectasse em várias telas quadradas, ao mesmo tempo, sobre uma parede cor-de-rosa e outra amarela, cenas de filmes diferentes,
  Acinzentou o dia, o que é logo suficiente e motivo para se levar a melancolia à rua. E é vê-la, a passear, pela mão destes e de outros, novos e velhos. Em dias assim paira um desalento, uma falta de vontade. O mundo detém-se esperando que o sol irrompa no que tem de glorioso para nos dar. Alguns não aguentam a espera e cometem desfechos irreversíveis, consigo mesmos. Outros subtraem vidas alheias, Às vezes em actos de grande violência, que nunca se poderá entender. Uns amuam como se fossem ainda crianças e não falam mais. Há quem gaste tudo no jogo, ou na bebida, ou mesmo em todos os pares de sapatos que pode comprar com todos os cartões que tem disponíveis e ainda lhe dão a ilusão de invencibilidade. Os mais sensatos, que insistem nisso, esperam. Nada mais. Quando finalmente aparece o sol e aquece, a melancolia corre a fugir, para se esconder por baixo dos tapetes, em casa. E aí fica, quase esquecida, até nova oportunidade. Todos em geral alegram, menos os que nunca foram capazes de

JOGADOR DE CARTAS QUASE PROFISSIONAL

  Andavam um melro e um pardal a fazerem pela vida num jardim público, saltitando daqui para ali, executando pequenos voos aleatórios e muito rápidos, quando uma criança, das que são irrequietas, começou a atirar-lhes pedras. pequenas é certo, mas suficientes em tamanho e peso para fazerem, no caso de acertarem, mossa. Não sendo, ainda bem, a pontaria o seu forte, esse acto considerado agressivo por parte dos pássaros, assustou-os, sabendo-se que são seres por natureza delicados e sensíveis. Quem assistiu a este episódio foi o senhor Manuel que apesar de se estar a dirigir apressadamente, tanto quanto a compressão do nervo ciático lhe permitia, olhou com atenção, já estava atrasado para o local habitual - uma mesa de jardim coberta de nomes e corações e coisas impróprias, riscados a canivete – onde todas as tardes, chova ou faça sol, joga cartas com os mesmo parceiros, a não ser que um deles misteriosamente, mas previsivelmente, desapareça sem deixar rasto. O senhor Manuel é considerad

ETERNIDADE

  - Quando crescer vou ser como tu? - Não, vais ser tu. - Não quero. Quero ser como tu. - Não podes. Vais ser melhor. - Melhor como? - Diferente. Tu próprio. - Ser melhor para mim, é ser como tu. - Mas eu não sou melhor, sou eu. Como sou. - O melhor. - Se quiseres, quando cresceres serás eu mais tu. - Os dois num só? - Sim. A soma dos dois. - E como vou saber qual é a tua parte e a minha? - Não te preocupes, misturamo-nos um com o outro. Assim não nos podemos dividir. - Está bem. Falta muito para isso acontecer? - Já aconteceu. - Quando? - Desde que nasceste. - Não me dei conta. - Pois não. Os filhos são a continuação dos pais. Sempre assim, uns dos outros. - Assim não te vou perder. - Pois não, tens-me sempre contigo. - Queres dizer que nunca ficarei sem ti? - Sim. Vou-te contar um segredo mas não o contes a ninguém. - Não conto. - Nós os dois, juntos, somos a eternidade.

O SENHOR DARWIN

  O Darwin, um cão que nos habitamos juntos e julgo com prazer comum, é de uma grande seriedade. Por vezes chego a pensar que é ele o adulto e se calhar é. Claro que tem as suas coisas de cão, que a nós nos incomodam por acharmos primitivas e deseducadas. Lamber tudo e mais alguma coisa, sem pudor absolutamente nenhum, cheirar inconvenientemente partes mais susceptíveis, ter um apetite voraz, roer objectos que não deviam ter nenhuma relação directa com esse facto e que alguns deles nos fazem falta para o dia-a-dia, estar sempre com vontade de alçar a perna e não olhar a quê, ter uma fixação doentia por um sofá ou uma cama, sempre que lhe for possível, mesmo em detrimento total da sua magnífica cama com lençóis e tudo que custou os olhos de uma cara generosa. É no entanto e como dissemos muito ponderado. Não alimenta discussões, aceita pontos de vista diferentes sem hesitações, ouve quando tem de ouvir, não se mete nem em política nem na vida dos outros. Não demonstra religiosidade nenh

O GATO

  Está parado, melhor, estaticamente numa posição neutra, tanto tempo ou nenhum, quanto o necessário para ser invisível, mesmo que seja à nossa frente. Ou então desaparece, deixa-se de saber dele, onde se meteu, onde se escondeu. Num canto, debaixo de algo, tapado por alguma coisa, num cimo qualquer, lugar de observação panorâmica, mimetização perfeita. Mestre da camuflagem. Ausência de ruído, anda como que flutuando, sem esforço no movimento que produz, conseguindo as maiores das proezas do equilíbrio. Funambulista, trapezista, trepa-paredes. Aplaudido em ovação. Todas as posições das pálpebras nas suas relações com a focagem, desfocagem do olhar e do que vê, são fortes, vivas, o mistério. Impenetrável ou cristalino. Opaco ou transparente. Meigo, extremadamente, distante, irredutível. Uma festa, todas as festas, aproximação, ninho, afastamento. Frio. Primordial, essência, mistério Depois das palavras. O Oráculo  silencioso.