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Mensagens

FAROLEIRO

  O faroleiro tinha como principio quando folgava, não se dar com ninguém, o que facilitava a solidão em que um faroleiro vive. Não quebrava essa ligação permanente, era a sua disciplina. Passando a maior parte do tempo calado, quando estava em sociedade, para não alterar o seu quotidiano, vertia as palavras para dentro e ouvia as dos outros. Não dizia nada. Encostava-se ao canto mais remoto do velho balcão de madeira de carvalho do pub da aldeia e deixava-se estar por aí, todo o dia, absorto, olhando não se sabendo se estava realmente a olhar para os clientes, quase todos, os habituais e meia dúzia não mais. Alguns foram companheiros de escola. Uma cerveja forte, áspera, acre, era a sua companhia. Assistiu nesse lugar privilegiado a grandes acontecimentos históricos: anúncio de casamentos, uma rodada pelo primeiro filho, divórcios, disputa de terras, mexericos corriqueiros e cenas de pugilato, uma arte que se dá com o álcool e a exaltação dos ânimos, infelizmente não místicos. De nom

O ESCRITOR DE PARÁBOLAS

  O Senhor H abandonou a ideia da morte, por resolução pessoal, convenientemente interiorizada, e sem intervenção nem pedido externo no dia que compreendeu que o seu pensamento andava a ser intoxicado por essa recorrência mas que o culpado era outro, não o sabia ainda. Andava nisto há mais de vinte anos, sempre vestido de azedume, cor de breu petróleo, ou petróleo breu, não interessa a precedência, a mesma tonalidade da cor. Fervilhante com a sua ideia incrustada na cabeça, terá mesmo pensado em cometer suicídio, mas depois ficava mal visto e não queria. Tinha ideias fixas. Outras vezes, quando a crise agudizava, pensou em orquestrar um massacre colectivo, que seria ao mesmo tempo uma vingança apoteótica contra a frieza da sociedade, a desatenção profunda, cuja ligeireza leva as pessoas ao engano, e um espectáculo de pirotecnia: todos condenados à solidão, convencidos que andam acompanhados, só porque o vizinho do lado é estridente. O Senhor H era um pessimista, mas tinha de ser alguma

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava
  Resumimo-nos a um punhado de ideias, algumas muitos vagas. No fim da viagem, nem essas estão no saco: rompeu-se pelo caminho

UNIVERSOS

  Gregório acordou tardiamente com uma ligeira indisposição. Não era uma dor, era uma sensação de pressão, forte, que se concentrava nos sobrolhos, dificultando abrir os olhos e ver. O quarto, humilde, onde dormia no entanto com o conforto de ser o seu quarto, estava ainda submerso no tempo da noite, da escuridão, do quase silêncio, mas os indícios evidentes de um novo dia, despontavam na sequência natural do despertar dos dias. Deixou-se ficar na cama, um pouco mais, uma hora. Nunca faltou a um dia de trabalho e cumpriu sempre com o rigor que era o espelho da sua pessoa, quase pobre mas rigorosa, os horários. O chefe acharia estranho, incomum, franziria com certeza os músculos do rosto, poderia mesmo vir a fazer um comentário, mas compreenderia. Era uma boa pessoa e não estava ali para julgar ninguém. Ele próprio não gostava do emprego que tinha, mas os homens comuns não podem escolher os empregos que querem ter. Essa estranha pressão, alastrou a todo o corpo. Dava a sensação que a

DITADOR

  O ditador sentou-se com estrondo no cadeirão ricamente ornamentado e desfaleceu. Afinal, ele também morria, acontecimento a que os seus fiéis seguidores não acreditavam  pudesse acontecer, por ser ditador e poderoso e por o entenderem como o pai da nação. Se tivessem parado um pouco para respirar e pensar, encontrariam toda a lógica nesse facto, já que se todos os outros homens morrem, também ele passaria por esse dissabor maior. As cerimónias fúnebres foram muito bem organizadas e exemplares. Filas a perder de vista de pessoas a prestarem a última homenagem, e inúmeras coroas de flores, dir-se-ia uma competição pela mais bela, elaborada e rica coroa de flores. Todos os presentes se apresentaram de fato negro e fumo no braço direito. Enterrado o ditador, cumpridos foram os dias de luto oficiais ainda com algumas lágrimas e suspiros a salpicarem os ambientes. No dia seguinte ao último do luto, ninguém mais pronunciou uma palavra que fosse em memória do esvaecido. Fosse de louvor ou

MODALIDADE OLÍMPICA

Um dia, do nada, pôs-se a nadar, e foi parar ao Barreiro. Atravessou o Mar da Palha, não foi pouco, desde Xabregas. Nem se deu conta da distância percorrida. Quando se faz por gosto é fácil. Os amigos que estavam com ele nas conversas habituais dos entardeceres de verão, à beira rio, quando deram conta que ele tinha saído dali a nadar, nem queriam acreditar, boquiabertos, não lhes passava pela cabeça que ele, um rapaz da cidade, soubesse flutuar sequer, quanto mais nadar. Desde esse dia, já que não tinha nada a perder de uma vida que lhe estava a dar tão pouco do esforço tanto que fazia para a ganhar, não fez mais nada senão nadar. Não é bem assim, é um exagero. Constituiu família e todos os actos notariais ou não a que se obriga um homem de bem, mas no restante tempo, a maior fatia, nadava. Nadava em todas as direcções. Bastava que lhe indicassem uma linha, imaginária que fosse de chegada, e punha tanto empenho, que a maioria das vezes era o primeiro a cortar a fita. Principalmente ao