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MULHER A LER

Estava instalada a desorganização do mundo.  Desmoronavam os castelos de cartas. As metáforas perderam o brilho. As poesias perderam a imunidade. Homens e mais homens caiam, uns depois de outros, frente ao inominável. Eles lutavam com o que tinham -quando se trata da sobrevivência, todos bravos, corajosos, heróis para si mesmos - mas parecia uma guerra perdida, o inimigo cada vez se agigantava mais, e mais, ceifava rente os rebentos que tentavam a sua sorte, fazer-se flor. O maior de todos os problemas, o problema sem solução, é que esse inimigo era invisível, impalpável, indetetável a olho nu. E não se fala de micro-organismos. De fraternidade, é o que é. Em consequência do mundo ser nesse momento um sitio mal frequentado e impróprio, uns ficavam em casa, não se sabe se sábios nessa decisão, entediavam-se muito. Não estavam habituados a estar em casa, junto dos seus. Tinham esquecido as artes do convívio, perdido por desnecessário o paladar da conversa. O tempo

SORTE

A sorte, que não é, outra coisa, não capturamos o nome, de estares aí, a viver a vida mesmo que  banal, e eu como tu, sem virmos a deixar dito ou feito, nada de relevante. Fosse religioso, diria um bem, benção. como não sou só posso terrenamente deslumbrar-me todos os dias que desperto, por essa sorte que não o é, de estar vivo e ter-te convivido,  banais os dois.

MONSARAZ E O PAULO QUE CUMPRE ANOS

Um castelo no alto de uma colina não é uma novidade. É uma conjugação antiga com benefícios para ambos. Começa-se a ver ao longe, a aproximação pode-se prolongar, vai-se construindo uma opinião madura, com alguma folga de tempo. Dá para sopesar o suficiente. Chegados, ou já se gosta o suficiente, ou é uma visita perdida, inútil (já que se chegou ali, tiram-se uma fotografias, e resolve-se a questão). Este castelo tem muralhas e dentro um ajuntamento antes habitacional, agora mais turístico. Caiado, branco e puro. Arranjadinho. Tem uma torre de menagem (dizem que obra de Dom Dinis. Se foi, fez bem. Aprecia-se), abraçada a uma pequena arena circular, com bancadas em pedra. Homens e touros, certamente. Nesse dia, alguém desconhecido mas com sensibilidade, traçou presume-se com um pau, ou bengala, ou chapéu-de-chuva, um coração. Sendo este símbolo de um poder imenso, desculpam-se temporariamente os toureiros e olha-se para o enquadramento como uma coisa rústica, primeva, mediev

MELANCOLIA

José António tinha um reservatório com capacidade de armazenamento para três mil litros de melancolia não tratada, em bruto. É muita capacidade. Com um reservatório destes, está-se à vontade. Até encher, acumula muita melancolia. Era por isso que José António não estava preocupado com excessos. Dava e sobrava. Não tinha que se preocupar com o risco vermelho, nunca chegaria a isso. Nestas condições, as ideais para não se olhar a meios – tomara muitos terem um reservatório com esta volumetria – José António sabe que pode usar e abusar da melancolia. Para quê poupar-se?, um mãos largas. Refira-se que José António no seu quotidiano, nem se lembrava do reservatório. Era uma coisa longínqua, uma facilidade que fazia parte da sua propriedade: um andar térreo com pátio, onde esmerava numa pequena horta com intenções biológicas e onde era permitido mijar o cão, de raça minúscula, que não mijava por ai além, não dando cabo das flores e do cultivo. Tinha coisas mais importantes co

PAZ

Também eu quero paz, como lhe chamas, um nome imponente. Ficar quieto, em que tudo se aquieta, indiferentes às entropias, impávidos perante qualquer rumor, mesmo que em nosso nome. Não nos deixarmos afectar pelo que nos rodeia próximo ou longínquo. Estar sem nada fazer a não ser receber a paz, que é fazer nada, bem feito. Sem alterações de excitabilidade. Impavidamente. De figuradas pernas abertas na cabeça. Disponível. Absorver pelo que tenha que ser, independentemente do querer. Sem consequências. Assistir sem formar opinião, deixar correr. Não é deixar, porque não temos acção consciente sobre isso. Nem vontade que seja pessoal. Nem pessoal nem de outro por nós. Um fluir, imitando os deterministas, pessoas sérias, bem-intencionadas, persistentes numa filosofia que magoa a ânsia de liberdade de alguns, dos que se magoam com facilidade. Ver como um fado, marcado, nas linhas das palmas das mãos. Uma paz assim, queremos porque estamos vigilantes, mesmo sendo

ARESTAS

Limo as arestas, sempre a limar arestas, a profissão mais monótona que consegui ter. Aprendi sózinho, copiando outros, fui apurando os gestos e a disposição para eles seguirem as ordens da cabeça. No inicio errei bastante, normal. Com o tempo, anos, veio a experiência. Hoje sou bom no que faço. Muito bom. Não me sobra tempo para nada mais e ainda assim, há instantes em que se instala a dúvida, sem certeza que foram convenientemente limadas. Creio que é uma missão. Não fui obrigado. As condições criadas e totalmente alheias da minha vontade, expressa ou imaginada, levaram-me por esse caminho. Outros são carrascos, outros banqueiros, outros amantes competentíssimos. Há de tudo. Quando me apercebi já era tarde para mudar, deixei-me ficar: melhor fazer alguma coisa do que nenhuma. Quanto à importância do que fazemos, para o mundo em geral, o que isso altera ou influi ou conta, já não sei. é um assunto que ultrapassa o meu entendimento. Só sei limar arestas. Temos que ser

COMO É O PARAÍSO

Empolgamos e não há outra forma, senão agarrarmos  as dobras dos limites e, num esforço, acima do comum que nos foi permitido, pomos os olhos de fora tentando vislumbrar, crianças curiosas, a que  é parecido o paraíso.