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PELO SIM PELO NÃO

Considerei ficar em silêncio. O que tenho para dizer? Tomei essa decisão no meu íntimo, uma audiência a dois. Eu e eu. Sem contaminações externas. O meu silêncio. Era o que desejava. Apesar de ser fundamental, e ter uma opinião formada sobre o assunto, que considerei desde logo fracturante, pensei ser inútil manifestá-la publicamente. Um desperdício de oportunidade. Não para mim. Podia até ser incómodo. Dizemos uma vez e logo nos atribuem uma cor. Uma bandeira. Um lado da barricada. Não é isso que quero: escolher o lado do passeio que mais me agrada. Posso gostar dos dois lados e ter uma vida inteira feliz com essa escolha ambígua, ou vista à luz de outro ângulo, uma decisão sensata. Ninguém me pode apontar um defeito se eu passear com prazer por cada um desses lados, alternadamente, de uma forma descontraída. Fico em silêncio também por respeito, aos mais velhos e aos mais novos, a todos. É bom gozarmos dos bens tangíveis e intangíveis, úteis e fúteis, que temos à mão e pe

UM GOSTO PELA ETERNIDADE

Estive toda a noite a ser eterno, contemplando ausente de pensamento, uma música de Wagner: a abertura da ópera Lohengrin. Foi nesse flutuar, que tomei as rédeas ao tempo e algemei o espaço. Na dimensão do vazio, ou do pleno de tudo, os únicos espectadores dessa experiência, reconheci, aproximei-me e cumprimentei deus, que entretanto apareceu. Foi tão simpático que passarei a dizer Deus. Não tendo dualidade dúbia de critérios, cruzei-me com o diabo e acenei-lhe porque sou educado. Sem esperar que me considerasse, foi curioso, polido, pelo que lhe devo um tratamento futuro com maiúscula. Resolvidas questões metafísicas, segui em frente com a minha vida sem que ninguém me importunasse. Percebi que na eternidade, cada um é como cada qual. Fiquei confortável com isso. Acabei por vir a adormecer, já que a ausência de pensamento ao fim de algum tempo dá sono e não resisto em nenhuma circunstância a uma boa soneca. O que aconteceu após a audição continuada dessa abertura do

PASSA NÚMERO 12

Quatro mil milhões de mulheres e homens e crianças têm fome. Todos os dias nas suas vidas, têm fome. Vinte e nome humanos, dos mais de sete mil milhões de humanos, acumulam uma riqueza equivalente a quatro mil milhões de pessoas. Um só homem é muito pouco para mudar o mundo, mas se passar a palavra…

CONTO DE NATAL - A FESTA

Estava distante. Não respondia a coisas simples. Nomes. Todavia, sorria. Chegaram com acentuado atraso. Alguns começavam a estar incomodados com a alteração desnecessária da rotina. Ela sorria. Rapidamente montaram o que tinham a montar. Uma pequena caixa metálica pintada de azul, um azul ofuscante, piscava luzes verdes e vermelhas. É impressionante a área de tecto branco salpicada agora pelas intermitências projectadas dessas duas cores. E a sala não é pequena. Um ecrã de televisão com um tamanho generoso apresenta um fundo de mar azul. Percebe-se que é mar por ter pequenas ondas. Vão aparecendo frases a branco. Ele começa a cantar. Não se enganando, as palavras brancas ficam amarelas. Caso contrário, havendo erro, são vermelhas. A qualidade das canções escolhidas pode ser questionável. Como ela, estão quase todos distantes. Não olham para ele a cantar, não olham para o ecrã, nem sequer, apesar de razoavelmente grandes, conseguem ler as letras das c

BENEDITA E MÁRIO

A senhora Benedita é um doce de pessoa. Aquele tipo de ser, indiferentemente do género, de quem se gosta desde o primeiro momento. Benedita foi mãe solteira e assim se deixou ficar, não lhe fez falta ter mais família e muito menos a figura de um homem. Por nada em especial, nem antipatia sua, mas também não uma simpatia tão forte que a levasse a procurar e aceitar a companhia de um. O Mario, o filho, preencheu todos os espaços e bastou. Apesar de se sentir na pele de uma mulher feliz, se se sente isso na pele, sem outras ambições que as por si realizadas, pode dizer-se que não teve uma infância risonha. Começou a trabalhar desde que se lembra de falar, a levantar-se de madrugada para ordenhar as cabras, algures numa serra longe de tudo, filha de pais pobres. Nisso não sendo muito diferente da maioria das crianças da sua geração, descontando as privilegiadas, essas poucas em número. Como eles morreram cedo de mais para ela, mas quando estava contado vir a acontecer para eles, viu-

JUNTAR SONHOS

Naquela tarde, talvez por ser a tarde que estava marcada, percebi que não seria possível. Não recebi nenhum aviso de ninguém, o meu corpo não experimentou um estado físico diferente do habitual. Para além da sua rotina de corpo a funcionar sofrivelmente bem, não houve premonições, fenómenos de poltergeist. Nada. Estava como tenho estado nos dias anteriores a este, e espero que os próximos e os que mais tenham de ser, assistindo mansamente a um destes programas das tardes de televisão, dos que desfiam episódios menos risonhos da existência de todos os indivíduos. As coisas boas não passam na televisão, só misérias. Mas as pessoas gostam, é o que pedem, atestar os níveis de tristeza, com as experiências dos outros, cópias repetidas das suas.  Não abrem mão de ser um elo dessa grande corrente universal da condição humana. Fazem cadeias de amor por esses episódios baratos, rebuscados, quando não fazem nada pelas coisas que realmente importam, queixam-se, é só. Estou as

HORA DO ALMOÇO

Anunciou-se, espampanante. Encheu a casa de dar nas vistas, com um vestido caído a acompanhar as linhas do corpo, mas ao mesmo tempo largo, desimpedindo os movimentos, deixando-os à solta, uma linguagem corporal exuberante a sua. Rosa forte, a cor do vestido. Sentou-se na mesa que lhe indicaram. Estava irremediavelmente alterada com a sua entrada, a tranquilidade da sala. Antes pacata, sem história, clientes habituais a comerem pratos habituais baratos e por isso menos bons. Deixa-se para lá a qualidade dos pratos, agora, há uma tensão de olhares, de posturas corporais de atenção, os clientes na sua maioria, e os empregados todos, aguardam. O que aguardam eles? Que ela continue a representar, uma artificialidade, ou um essencial de si: encenando o seu verdadeiro. Pediu dois croquetes que são desenxabidos e colam-se aos dentes. Comeu-os com uma delicadeza no detalhe, de os agarrar educadamente, levar à boca com ponderação, trincar pedaço a pedaço como se fossem beijos ca