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BENEDITA E MÁRIO




A senhora Benedita é um doce de pessoa. Aquele tipo de ser, indiferentemente do género, de quem se gosta desde o primeiro momento. Benedita foi mãe solteira e assim se deixou ficar, não lhe fez falta ter mais família e muito menos a figura de um homem. Por nada em especial, nem antipatia sua, mas também não uma simpatia tão forte que a levasse a procurar e aceitar a companhia de um. O Mario, o filho, preencheu todos os espaços e bastou. Apesar de se sentir na pele de uma mulher feliz, se se sente isso na pele, sem outras ambições que as por si realizadas, pode dizer-se que não teve uma infância risonha. Começou a trabalhar desde que se lembra de falar, a levantar-se de madrugada para ordenhar as cabras, algures numa serra longe de tudo, filha de pais pobres. Nisso não sendo muito diferente da maioria das crianças da sua geração, descontando as privilegiadas, essas poucas em número. Como eles morreram cedo de mais para ela, mas quando estava contado vir a acontecer para eles, viu-se antecipadamente nova para poder levar avante essa vida de privações – ninguém gosta de penúria - no entanto a única que conhecia, e por isso, lhe parecendo muito apropriada à sua índole, se a sorte considerasse a sua opinião, sendo essa vida que ela quereria para si. Assim não quis a sorte. O pároco da aldeia, homem justo e sensível, recolheu-a, abrigou-a e em crescendo o suficiente para se pigmentar das formas e do tamanho de uma jovem rapariga, enviou-a para Lisboa, para casa de uns compadres. De empregada doméstica. Cumpriu exemplarmente a função que a vida lhe atribuiu. Não se queixou, nunca, foi uma empregada exemplar. Nada é mais importante, ser bom no que se faz. Ela não queria, mas por insistência dos patrões, que estavam sempre a dizer que devia distrair-se, começou, no pouco português que sabia, a corresponder-se com um rapaz, que não conhecia pessoalmente, ido contrariado para a guerra colonial, obrigado, não há ninguém em seu juízo que vá aos saltos e pulos de rejúbilo para uma guerra. Oriundo de uma terra próxima da sua, mas isso foi uma coincidência sem nenhuma consequência no futuro de ambos, até porque nenhum deles apesar de vizinhos, conhecia a terra de cada um. O seu português, a bagagem, sendo pouco era bonito, ou seja, ela tinha uma bela caligrafia, dava a sensação que tinha, que não, nascido para caligrafar, e por uma razão que não se sabe a justificação, dava para juntar palavras desconcertantes nas frases curtas que lhe saiam da mão, sendo mais correcto afirmar que lhe saiam da cabeça seguindo um impulso nervoso electro-motor que desaguava na mão que dava refúgio á caneta. As palavras em si não eram desconcertantes, era o serem convidadas a marcar presença em frases que aparentemente não precisavam delas. Explicamos, para que se entenda, numa das frases que ela escreveu a iniciar um aerograma: Cintilante António, o brilho do teu anterior aerograma encadeou-me os pensamentos, de tal forma que estou emperrada de começar este que agora quero pôr a voar para ti, alimentando-me que te encontre de boa saúde e esperançoso de vida nesse cenário de morte. Se ela fosse de escritas, dir-se-ia que dizia poesia: a coabitação mais improvável de palavras improváveis, que resultam bem, mas ela mal sabia escrever e talvez nem sequer soubesse as cerca de três mil palavras, que é o que dizem que os mais poupados, preguiçosos, ou o que quer que sejam, usam no seu vocabulário de dia a dia, que são todos os dias e com isso conseguem chegar ao fim do seu caminho, tal qual como os outros que sabem muito mais palavras. O que mais estranhava no seu caso particular, era que tendo essa bagagem curta, desta fazerem parte algumas totalmente desencontradas do seu contexto pessoal, que de alguma forma ou circunstância acontecida e não assinalada, terá contribuído para que ela renha tomado conhecimento destes vocábulos e os tenha integrado no léxico privado. Ela no que à fala dizia respeito, não era assim, de utilizar excentricidades lexicais, era resumida, usando as mais práticas para a comunicação com o mundo – reduzido este, a um pequeno mundo: os da casa e mais tarde o filho e uma ou outra vizinha, como acrescento acessório e não essencial – e muito clara no dizer e no entender. O António, voltando ao militar que vai entrar e sair desta história a uma velocidade sobre-sónica, lia as suas cartas com alguma estranheza e pé atrás, fazendo no seu íntimo a ideia de que ela devia ser ligeiramente solta de parafusos, se bem concordasse que não sendo propriamente ele um mestre do idioma, ser possível que ela escrevesse no domínio da língua, e residir nele a incapacidade, por desconhecimento, de compreender a fundo a razão de certas palavras figurarem no enfiamento das frases que ele lia. Confundia-se assim a lê-la. A coisa deixou-se andar, o tempo, como a água, passou por baixo e por cima das pontes, realizando este feito por ser tempo, se fosse água era só por baixo, e chegou o dia em que Benedita e António se conheceram num cais onde atracou o barco que trazia de regresso aqueles que um dia foram vivos e regressaram menos, menos vivos, porque mesmo não se morrendo numa guerra, jamais se recupera a vida na sua totalidade. Antes de voltarmos a essa ideia, que é importante, diga-se que um cais qualquer é o primeiro ponto de contacto com o regresso, sendo por isso, apesar de pouco referido em qualquer história, um espaço que cumpre uma função fundamental. Ponto de início, ponto final.
Pegando no enredo, Benedita e o António menos vivo de quando saiu, conheceram-se um dia, quando ele regressou manco da totalidade da vida. Ela, a protagonista, já realizada e inteira que sempre o esteve. As palavras nesse momento foram mesmo poucas ou quase nenhumas, ele ensaiou um beijo que nem se sabe bem se se concretizou enquanto beijo, ou só como movimento desajeitado de uns lábios rumo ao nada.
No dia em que iam casar, faltou ele, não teve coragem, refugiou-se no canto do seu quarto de dormir, a chorar, a chorar águas a fio, tremente, e não foi capaz. Veio com o vírus da guerra, em si, doença sem cura, incapacitante, tanto que não se casou. Não se vem a saber mais de seu futuro, incapacitado. Ela ficou triste mas não muito, tinha-lhe afecto, carinho, mas amar de criar palpitação só ao filho, que no dia em que iam casar já o levava gerado em si, sabendo disso, isso é que era a verdadeira felicidade. Para que fique arrumada a história de António, não conseguiu ser mais nada, quando mal tinha idade para ser alguma coisa, senão doente, de fantasmas maiores que ele, a fazerem sombra, constantemente, impedindo a luz de a ver e de lhe penetrar os polos da pele, regenerando-o de boas energias, calor, sensação de bem-estar. Vida viva desperdiçada, guerras putas imundas todas.
Mesmo assim, não havendo anéis de compromisso usados nos seus dedos, sobrou-lhes um filho. Ou antes, que não sobra nunca, acrescentou-lhes à importância de terem vindo a vivos, um filho, uma continuação, a perpetuação do nome, não, o prolongamento de uma espécie, antes isso.

….

Mário jantou, com a mãe, em silêncio, como se fossem duas pessoas solitárias. No entanto amava a mãe, era um bom filho, e esta ele, incondicionalmente, pensava e acredita-se que sim. Quando Benedita levantou as sobras, António levantou-se igualmente e deu-lhe um beijo na testa. Ela descompôs-se como sempre lhe acontece quando ele demonstra amor. Um beijo na testa é sempre um grande beijo.
Verificou os objectos que tinha na mochila, acrescentou um reforço para quando vier a fome, e saiu de casa. Era cedo, nove da noite, mas ele, meticuloso, gostava de fazer as coisas com tempo e ser pontual. Levaria ainda duas horas a chegar ao emprego, tinha de atravessar a cidade, mas antes, tinha de vencer a distância que o separa do subúrbio onde vivem e até chegar à cidade, para a percorrer, extremo a extremo, subterraneamente, como um rato que não é, faz o trajecto de metropolitano. Trabalha num call center, ele e centenas de eles, anónimos, entediados, apagados, fazendo turnos de doze horas, nas vinte e quatro do dia dos dias todos. Licenciou-se, foi bom aluno, um esforço ciclópico de revolver o mundo, para a mãe, solteira sublinhe-se o facto consumado, e empregada de limpezas alheias, sempre a ser curto o dinheiro, mas ela economista de primeira com a quarta classe mal feita, a conseguir, e chegou lá. Licenciaram-se os dois. Ele com nome no canudo, ela com a taxa de esforço para o fazer formado. Ele ajudou, por ser bom aluno e porque mal pode começou também a trabalhar, pequenas coisas, as que apareciam. Terminados os estudos, começam novos problemas, o trabalho. Onde o há? Decente, que ajude a pagar contas, e se sobrar algum, um pouco de distração, também se merece. O trabalho que encontrou pode considerar-se tecnicamente como uma escravidão dos tempos modernos, praticamente, sempre precário, temporário, recibos sem protecção, estar colado ao assento da cadeira, para não lhe ocuparem o lugar, ainda assim o que se arranjou, é de preservar. A mãe não se vai deitar até que ele volte, não seja por outras razões, os beijos que o filho lhe deposita tão carinhosamente na testa valem a vida a merecer de ter vindo vivê-la por acasos de vontades externas.
Mário tem noites complicadas, tem a responsabilidade da América latina, imagine-se a imensidão de todo um continente, a seu cargo, que cargo tão importante tem dele. Polícia nas “redes”, ou mais difícil ainda: guardião do Bem.
Mário vestiu-se de uma melancolia com cores, e assim leva a vida, boiando na tona de um menos mal, quase a ser bom. Sem complicações, compromissos, decisões fracturantes, nada, navegando ao sabor da corrente que o levará sabe-se onde, por aí fora, até qualquer destino que pode muito bem ser um destino sem nome, algures no finito infinito desta terra sem nada de novo para descobrir. Pode até vir a desembocar, essa correnteza de vida a sua, em ser pai, a única missão que parece contabilizar créditos à condição dos homens, sendo o resto coisas do acessório.
Para já cumpre uma função nobre, com sentido. Em frente a um ecrã de computador, pela noite fora, enquanto mais de metade do mundo dorme, ele escrutina, procura entender os sinais, encontrar um sentido, uma lógica, perceber, até mesmo antecipar, o momento, de uma fatalidade, latente, a acontecer a qualquer momento. Ele procura padrões de comportamento de utilizadores das redes sociais, que indicam estados alterados, desarmonias, depressões, desistência, e muitos dos indivíduos que põem termo à vida, fazem-se anunciar, para serem salvos, ou para dizerem que já não vale a pena serem salvos. É esse o trabalho de Mário, pelo que ganha pouco mais do que um salário mínimo, com um carácter sempre temporário. É o que vale o seu contributo à sociedade, aos olhos, turvos, de quem inventou a rede social, de quem o contracta para servir de voz de consciência a quem é surdo para ouvir as desgraças do mundo.
Mário não tem ambições, senão deixar um dia essa profissão de guardião da pureza inquinada dos homens, fazer malas, poucas, e voltar com a mãe ao ponto zero da vida: a pequena aldeia de onde ela saiu, sítio que ele não conhece mas que lhe parece ser o único local onde poderá encontrar uma felicidade que se ajuste a esse pequeno reservatório de cores que ele admite na sua tristeza suave. Queria ser pastor, ganhar a liberdade de poder escolher os caminhos nas possibilidades que o campo dá que são todas as direcções a prazer da decisão dos passos de cada um. Gostaria também de vir a ter um cão, uma ideia romântica que tem destes animais seres companheiros genuínos e incansáveis. Depois, chegar a casa, dar um beijo na testa da mãe. Esta plenamente realizada de amor, bastando-se os dois.
É uma historieta banal contada em estilo telegráfico. A vida é uma correria, não há tempo para paragens, esses são assim, outros assado, cada um com as suas corridas de fundo, todos com um final mais do que previsível, que a saber que se conste e nunca constou, não há quem fique para eterno e depois de mortos, é que a vida ganha sentido, acabam-se os dias negros e é toda uma eternidade azul celeste.  
Até lá penem-se as penas depenando-nos, chegados lá, é um descanso.



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