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O HOMEM QUE VIVEU O MAR - O ABEL APANHA O ARMÉNIO EM FLAGRANTE

O Arménio só tira pastéis em dias alternados. É uma crença sua. Na chaputa e na faneca não toca. A meio do trajecto na volta da taberna, senta-se no chão com as costas encostadas à parede das cavalariças do solar dos Duques, onde esporadicamente faz serviços indiferenciados, mas o que verdadeiramente   lhe interessa, onde se sente inchado, grande, importante ao mundo, é   trazer com a rédea na mão - ele de estatura baixa -, os baios lusitanos – imensos, altos -, até ao cais de embarque. Vão para o Brasil, para os fazendeiros das enormes fazendas a perder de vista, é o que dizem, grandes apreciadores dos nossos cavalos, os lusitanos. No dia sim dos dias alternados de tirar pastéis, encostado ao muro, degusta relaxadamente a iguaria. Toma-se de todo o tempo para as papilas gustativas se inebriarem e depois fica esparramado, sem dar conta de si, a semi-olhar para o céu, a gozar o efeito alucinogéno do bacalhau a circular nas veias, depois de devidamente processado. C

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - PASTELINHO DE BACALHAU

Depois das aulas da manhã o Professor Abel almoça   no andar de cima da escola, a sua casa, talvez a última. Deixou a família morrer e não a foi substituindo, está sozinho. Não é que quisesse que toda morresse, mas sendo esse acontecimento obrigatório, podia ter-se precavido aumentando-a. Não o fez. É um homem de poucos convívios, não se lhe conhece o tempo do passado, de onde veio, de perto ou longe, se já foi feliz, ou foi sempre assim, como parece ser: uma pessoa desprendida, que cortou ou perdeu os fios-guia, que ligam a qualquer coisa ou coisas.   Tem por companhia única um livro a quem ele dá o braço, no pouco que sai, indo acompanhado desse livro sem título conhecido, se é sempre o ou mesmo, ou muda, não se sabe onde vai com ele. Mas um livro pode até ter vida, mas não é um ser vivente e como é natural nestes casos, e já se estava mesmo à espera, as pessoas falam e imaginam coisas. São férteis as imaginações. No fim das aulas de uma manhã, todas iguais, com

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - MAIS FAMÍLIA

P ara se perceber melhor Florinda casou com Jacques e a dois, a vida foi-lhes um pouco melhor. Ela amansou dos nervos, os comprimidos a partir de uma certa idade ajudam, deixou o trabalho do armazém, tornou-se doméstica a tempo completo. A polícia de Estado acabou por se desinteressar do seu caso. Não detectaram mais ligações subversivas do que as ligações de afecto com a sua família, mãe e irmãs, e as relações de circunstância com os personagens mínimos exigidos no quotidiano de qualquer um: vizinhos, o senhor da mercearia, o homem do talho, a peixeira, o taberneiro, o do carvão, e pouco mais. E se as relações de família também podem ser subversivas, são de uma outra ordem, não interessam ao Estado. Havendo tantos e tantos para espiar, desistiram da Florinda. O Jacques que tinha muita conversa, apesar não falar francês, saiu da distribuição das botijas de gás, deixou a sua moradia “senhorial”, no bairro do chinês, alugou uma casinha humilde, mas de alvenaria e tel

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - RELAÇÕES DE FAMÍLIA

A herança familiar O que importa trazer para aqui os instantâneos de outras vidas, para fazerem mais cristalino o vislumbre da vida de Tertuliano, o homem que viveu o mar? Valem muito. Todas as biografias são enriquecidas pelas marcas dos outros. Uma vida conta-se pelo seu álbum de fotografias e neste não só se colam os auto-retratos, como também fotografias com mais rostos, Ora sorrindo, ora sérios, em pose ou descontraídos, paisagens também, e casas mais ou menos significantes e grandiosas. Uma vida também se conta por um ou outro acontecimento passado para a memória dos que ficam a aguardar a sua ordem de viagem. Mas o que foi o íntimo de cada um, a essência individual, nunca se conhece verdadeiramente. São os monólogos interiores, à porta fechada.; as perguntas e respostas feitas e dadas pelo próprio; os pensamentos fundamentais ou irrisórios. Isso não se vem a saber. Isso é o que é a pessoa. O que sobra são rotinas, encenações e conveniências. Como afinal os ou

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - QUANTO TEMPO É O TEMPO DE UMA VIDA A DOIS?

No intervalo   entre a guerra que viria a seguir, que os protagonistas, estes, não sabiam que viria – assim pula a fazer futuro a história dos homens:  guerra sobre guerra, com intervalo entre duas para fumar um cigarro, ou simplesmente respirar esperança – a Cústodia e o Tertuliano amigaram-se.  É correctamente assim, e é muito mais bonito do que dizer “juntaram-se”, ou mesmo “encostaram-se”, termo este que pode desencaminhar para outras interpretações, e é rude. “Amigado” conceito interessantíssimo, é uma não figura do Direito civil, vista como pecado aos olhos castos dos vizinhos, todos tão crentes, tempos de muita e boa fé, apesar de cada um à sua conta e número, transpirar pelos porozinhos da pele, o seu viciozinho privado. Levam a missa inteira de trás para a frente e no sentido contrário, só porque a decoraram de tanto a dizer. A seguir a preceito o que ela diz, é uma outra história. Um corropío constante, a toda a hora do dia, de benzas a Deus, aos santos e à