Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - MAIS FAMÍLIA

P ara se perceber melhor Florinda casou com Jacques e a dois, a vida foi-lhes um pouco melhor. Ela amansou dos nervos, os comprimidos a partir de uma certa idade ajudam, deixou o trabalho do armazém, tornou-se doméstica a tempo completo. A polícia de Estado acabou por se desinteressar do seu caso. Não detectaram mais ligações subversivas do que as ligações de afecto com a sua família, mãe e irmãs, e as relações de circunstância com os personagens mínimos exigidos no quotidiano de qualquer um: vizinhos, o senhor da mercearia, o homem do talho, a peixeira, o taberneiro, o do carvão, e pouco mais. E se as relações de família também podem ser subversivas, são de uma outra ordem, não interessam ao Estado. Havendo tantos e tantos para espiar, desistiram da Florinda. O Jacques que tinha muita conversa, apesar não falar francês, saiu da distribuição das botijas de gás, deixou a sua moradia “senhorial”, no bairro do chinês, alugou uma casinha humilde, mas de alvenaria e tel

O HOMEM QUE VIVEU O MAR - RELAÇÕES DE FAMÍLIA

A herança familiar O que importa trazer para aqui os instantâneos de outras vidas, para fazerem mais cristalino o vislumbre da vida de Tertuliano, o homem que viveu o mar? Valem muito. Todas as biografias são enriquecidas pelas marcas dos outros. Uma vida conta-se pelo seu álbum de fotografias e neste não só se colam os auto-retratos, como também fotografias com mais rostos, Ora sorrindo, ora sérios, em pose ou descontraídos, paisagens também, e casas mais ou menos significantes e grandiosas. Uma vida também se conta por um ou outro acontecimento passado para a memória dos que ficam a aguardar a sua ordem de viagem. Mas o que foi o íntimo de cada um, a essência individual, nunca se conhece verdadeiramente. São os monólogos interiores, à porta fechada.; as perguntas e respostas feitas e dadas pelo próprio; os pensamentos fundamentais ou irrisórios. Isso não se vem a saber. Isso é o que é a pessoa. O que sobra são rotinas, encenações e conveniências. Como afinal os ou

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - QUANTO TEMPO É O TEMPO DE UMA VIDA A DOIS?

No intervalo   entre a guerra que viria a seguir, que os protagonistas, estes, não sabiam que viria – assim pula a fazer futuro a história dos homens:  guerra sobre guerra, com intervalo entre duas para fumar um cigarro, ou simplesmente respirar esperança – a Cústodia e o Tertuliano amigaram-se.  É correctamente assim, e é muito mais bonito do que dizer “juntaram-se”, ou mesmo “encostaram-se”, termo este que pode desencaminhar para outras interpretações, e é rude. “Amigado” conceito interessantíssimo, é uma não figura do Direito civil, vista como pecado aos olhos castos dos vizinhos, todos tão crentes, tempos de muita e boa fé, apesar de cada um à sua conta e número, transpirar pelos porozinhos da pele, o seu viciozinho privado. Levam a missa inteira de trás para a frente e no sentido contrário, só porque a decoraram de tanto a dizer. A seguir a preceito o que ela diz, é uma outra história. Um corropío constante, a toda a hora do dia, de benzas a Deus, aos santos e à

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - FADO

III Custódia cantava fado , Eram todas, à sua maneira, a maneira dos olhos que as viam, bonitas. Mesmo a que tinha um olho de vidro no lugar de um olho que viu regaladamente o mundo até ser vazado por um gato, sem culpa deste. Lindas, nas perspectivas e ângulos em que foram vistas e algumas vezes admiradas, nos seus anos de glória e infinito, que todos têm, até que se esgotam. Elas, os olhos que as olham, e o tempo sempre a passar. Era a Maria, a Florinda, a Silvina e a Custódia, a fadista desta história. O que é o fado? A ópera das pessoas anónimas, a que ninguém assiste formalmente sentado nos camarotes confortáveis dos teatros. Os que assistem não o fazem nessa condição, são eles também participantes, actores da vida real, encostados num balcão sujo de um tasco obscuro, com as paredes degradadas e escorrerem melancolia, num pingar constante, um jorro que nunca estanca. Humidades que adoecem os ossos e as almas que os habitam. Tristeza-prazer, lágrima-sorr

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - TEMPOS DE GUERRA

III Um paquete de luxo, orgulho da nação de marinheiros e empregados dos serviços terciários. No dia 26 de Maio de 1944, arredondando por volta da meia-noite,   Tertuliano está na ponte, a cumprir o primeiro quarto. É praticante de piloto, tem um chapéu de pala, e um galão dourado no punho do casaco muito azul escuro e grosso. Fuma reflexivamente um cachimbo, o seu companheiro intimo. Deixou de ser crédulo e uma “amélia”, é um jovem homem respeitável, em início de carreira. Parece-lhe já distante, a profissão de   pastor e de marinheiro de águas doces que foi ontem, mas não, é um intricado contínuo,   tudo embrulhado na mesma, em camadas, a vida é um mil-folhas. Naquele momento à beira do meio da noite, Tertuliano não pensa nessas coisas, observa a escuridão e as estrelas, está concentrado por inteiro na condução segura do navio. O céu despejado de nuvens e o mar meio adormecido prenunciam uma noite calma. Tremeluzem milhões de estelas e o piloto identific