Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

DIA FELIZ

A manhã fresca, aquecerá. O rio-mar. Salgado, mar bom. Quase silêncio. Gaivota, agudo som de uma gaivota, é silêncio, a voar. Uma mulher, um homem, um. Dançam imóveis, movendo-se. Encenação das mãos Mimam o ar. Dia feliz.

UMA CRIANÇA A CHORAR E UM TEXTO COM PALAVRINHAS INVENTADAS E FOFAS

Ver uma criança a chorar, totalmente frágil, desprotegida, agarrada a uma grade de metal, fechada num aquário todo ele em metal, remete toda e qualquer actualidade para coisa mínima, comezinha. Ficam poucochinhas as demagogias das políticas de saúde, as trapalhices gaguejantes na educação, a vergonha alheia de mal se vislumbrarem ministros que se escondem nos belos reposteiros damasco e outros, a ver se passam invisíveis das suas pequeninas-enormes imcompatibilidadezinhas. Até desapetece tirar selfies com o homem das selfies, quase tão ubíquo quanto o divino. Os futebóis são pustulazinhas infeciosas. Os fogos, oxalá sejam poucos e vá chovendo de vez em quando. Perante o choro de uma criança o mundo fica redundante e feio, e os monstros que nos governam ou são desleixados, ou usam botas com afiadas biqueiras de metal. Batem agora o pé e tudo estremece. Voltamos à era dos grandes medos e as televisões a darem enfadonhas e intermináveis horas de antena a imbe

LEMBRANÇAS

Cabidela de galinha do campo, língua de vitela estufada, sardinhas com salada de pimentos verdes. O problema está no escolher, apetece tudo. Vou para a língua, se estiver bem feita, é uma delícia. Hoje, um branco fresquinho. - Estava sentado, ali, naquela mesa do canto. - Frequento esta casa há muitos anos -o Senhor António, e o filho que se fez um homem e agora toma conta do negócio. Conhecem-me bem. - Vi-o e fiquei a pensar que nos conhecíamos. A sua cara não me é estranha. - A cabidela é uma especialidade, come-se bem aqui, e não é caro. Não me saía da cabeça que o conhecia. - Ah! Sim! - Daqui. Do bairr0 - Pois, como está o senhor? - Estávamos melhor há trinta anos, mas enfim. Cá estamos. - E isso é o que interessa. Continuarmos vivos. - Às vezes já nem sei. - Nem eu. É só medicamentos, e idas pelas receitas e análises disto e daquilo. O tempo que se perde! As artroses. - José Maria, muito prazer. - Joaquim Zimbro. - Desculpe, “Zimbr

SANTINHOS

Saem os santos à rua, e os homens, menos santos. Saem juntos sem diferenças, aperaltados e dançarinos e muito animados, fazem a folia. Cheiram os manjericos com quadras que rimam à força, lançam piropos às moças que não os repreendem por assédios, os santos não, que são santos. Está aberta a melhor época do ano. Uns descem a avenida, em coreografias simples que treinaram o ano todo. Levam madrinhas e padrinhos, uma excitação. É a sua noite de glória e o deleite da população expectante, a torcer pelo seu bairro. Ainda vai haver muita alegria, e muito choro. Os senhores de preto que agora estão disfarçados de cor, sentados na bancada das pessoas importantes, fingem que riem e batem palmas, não vendo a hora de saírem. Odeiam o cheiro da sardinha, mas disfarçam pelos votos. Uns, menos santos e mais homens, andam tresmalhados nos becos e nas vielas, onde mal conseguem andar milhares de pessoas e de gente, um mar imenso, petiscando sardinha, dando na febra, bebendo sangria b

PINTAR É ESCREVER COM OS OLHOS

RUA ANCHIETA

Um homem que vende livros na rua, como se vendesse flores: vende-os delicadamente, porque são flores - os livros - e as flores oferecem-se, são um sinal de apreço, ou de amor. Os livros, são tão ricos de cor e fragâncias como as flores, talvez com uma vantagem sobre estas: mal abertos e lidos, mesmo com as folhas gastas e amarelas do tempo, rejuvenescem instantaneamente, quando os leem olhos ávidos. São símbolos perenes, da beleza, do assombro, precisamente como as flores. O homem vende livros na Rua  Anchieta, aos sábados, e há clientes que os levam para casa, passeando como flausinos pela rua Garrett abaixo, como se levassem, que levam, um bouquet exuberante de flores primaveris. Os transeuntes olham para eles, e pensam nos seus íntimos, da sorte que estes homens têm de serem oferecidos de belas flores. Alguns, não olham porque nunca as ofereceram, desvalorizam. Outros, tantos, andam desinteressados tirando fotografias sem realmente saberem onde estão. Lera

QUERO, MAS OUTROS DECIDEM POR MIM. Uma reflexão sobre a vida e a morte

Quero morrer. Sobretudo, estou cansado, tanto. Estou cansado e é tão valioso esse sofrimento como estar eufórico. São coisas de cada um, íntimas, e sendo seguidor da tradição - que não se discute - relembro um ditado que diz” entre o homem e a mulher não se mete a colher”. Decisões destas, que só se toma uma vez na vida, ou nunca, são assuntos caseiros. Da cabeça de cada um, que dando a falsa impressão de os pensamentos serem um encadeamento monocórdio e de monólogos, isso não é verdade. São uma conversa interior, como um assunto de marido e de mulher. É por isso que eu quero morrer, por estar num túnel sem saída que se veja, não saindo do mesmo sítio. Não que o queira, todos queremos é viver, mas quando as condições se põem descaradamente insuportáveis, sejam pelo fastio absoluto do estado de continuar vivo, com o depósito da alegria vazio, então, quero mesmo morrer. Quero fazê-lo sem incómodos para ninguém. Para os diáconos que os dispensei há muito. Quero morre