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RUA ANCHIETA

Um homem que vende livros na rua, como se vendesse flores: vende-os delicadamente, porque são flores - os livros - e as flores oferecem-se, são um sinal de apreço, ou de amor. Os livros, são tão ricos de cor e fragâncias como as flores, talvez com uma vantagem sobre estas: mal abertos e lidos, mesmo com as folhas gastas e amarelas do tempo, rejuvenescem instantaneamente, quando os leem olhos ávidos. São símbolos perenes, da beleza, do assombro, precisamente como as flores. O homem vende livros na Rua  Anchieta, aos sábados, e há clientes que os levam para casa, passeando como flausinos pela rua Garrett abaixo, como se levassem, que levam, um bouquet exuberante de flores primaveris. Os transeuntes olham para eles, e pensam nos seus íntimos, da sorte que estes homens têm de serem oferecidos de belas flores. Alguns, não olham porque nunca as ofereceram, desvalorizam. Outros, tantos, andam desinteressados tirando fotografias sem realmente saberem onde estão. Lera

QUERO, MAS OUTROS DECIDEM POR MIM. Uma reflexão sobre a vida e a morte

Quero morrer. Sobretudo, estou cansado, tanto. Estou cansado e é tão valioso esse sofrimento como estar eufórico. São coisas de cada um, íntimas, e sendo seguidor da tradição - que não se discute - relembro um ditado que diz” entre o homem e a mulher não se mete a colher”. Decisões destas, que só se toma uma vez na vida, ou nunca, são assuntos caseiros. Da cabeça de cada um, que dando a falsa impressão de os pensamentos serem um encadeamento monocórdio e de monólogos, isso não é verdade. São uma conversa interior, como um assunto de marido e de mulher. É por isso que eu quero morrer, por estar num túnel sem saída que se veja, não saindo do mesmo sítio. Não que o queira, todos queremos é viver, mas quando as condições se põem descaradamente insuportáveis, sejam pelo fastio absoluto do estado de continuar vivo, com o depósito da alegria vazio, então, quero mesmo morrer. Quero fazê-lo sem incómodos para ninguém. Para os diáconos que os dispensei há muito. Quero morre

XADREZ

Joguei as mais desabridas partidas de xadrez sem saber jogar. Fi-lo por deferência ao meu anfitrião, para aliviá-lo do tédio e pagar-lhe dessa forma, ainda que desonestamente (eu não sabia jogar e disse que sim), o seu acolhimento. Claro que quando movi as primeiras peças, na primeira partida, ele entendeu a minha trapaça, mas perdoou, e sem nunca o ter dado a entender, com uma grande delicadeza foi-me ensinando xadrez, com sotaque basco. Houve mesmo um dia, que me deixou ganhar. Aí entendi eu que a vida não nos traz coincidências e que mesmo os acasos são jogadas que o grande jogador de xadrez tem preparadas para nós. Tudo isso a conteceu num tempo já a matizar as memórias, num tempo em que um bom jogador de xadrez com uma vida entediada, me abrigou dos desconhecidos, dos medos muitos da desassossegada aventura de ser adulto. A ti, José, onde estejas.

CELEBRAR A VIDA

Este sim, um festim.  Pela manhã, até ao limite de ser manhã, o dia que neste dia tem a tarefa de carregar o mundo para que todas as coisas sigam em frente,  ainda dá fortes indícios de pureza,  antes da poluição das futilidades nos dificultar a  a respiração e o desanuviamento.

LER, OBSERVAR E ALFACE

Num jardim, no meio da cidade, não propriamente o meio, mas dizendo dessa forma se somos levados a pensar com detalhe -   um preciosismo -, no jardim onde uma mulher lê livros e eu observo e denuncio, duas jovens quase obesas comem saladas. Elas são jovens para isso e não parecem gostar de ser, a menos que estejam a enganar. Essas saladas acondicionadas em contentores de plástico comprados no chinês, foram confecionadas pessoalmente, sendo fresquíssimas depois das alfaces terem vindo anteontem das Filipinas e o ananás ter estado em trânsito na Islândia depois de ter sido colhido há dez dias na Colômbia. Elas estão sentadas num parapeito e aparentemente satisfeitas, a contento da ordem pública, conceito que não existe em democracia. Cada um faz o que democraticamente quer sem ser multado. Quem acredita em teorias de conspiração, vê   esses filmes até em minudências, e diria que há uma conexão obvia entre as pessoas curiosas que estão em jardins ou noutros lugar

RALÉ

Não há poética em dizer isto: todos os homens são fundamentais ao andamento do mundo, menos a ralé, que são pústulas das sociedades, dejectos das classes, se ainda há isso. A ralé é a franja de gente periférica à existência humana, cada vez em maior número, que alimenta o extremismo, a ascenção com pés de lã dos totalitários. Sejam de que género e feitio forem: do futebol de praia aos bailes de debutantes nos salões do poder, a ralé está de novo a preencher os lugares vazios, multiplicando-se muito. As elites, alimentam as ralés, interessa-lhes, pois são os que estão disponíveis para abdicarem das ideologias, para não terem de pensar. São bem mandados a tudo o que fizer falta, por um simples mandar sem explicações. O seu reconhecimento é grupal, daí primitivo, por não se darem disponibilidade de se abrirem aos outros, diferentes. Recompensam-se no seu seio poluído, pelo número de feitos de malvadez praticados. Foi assim há setenta e nove anos. As elites

VÉUS*

Vestem escuro, vivem de negro. uma formalidade. Sorrindo e que alguém o possa vir a saber: que sorriram, porque não testemunham o sorriso. Um véu tapa-lhes essa possibilidade e o mundo, que queria tanto, nunca ajuizará a pureza desse rasgar genuíno de uma boca escondida. Praticamente só sobressaem os olhos, igualmente negros, grandes e muito redondos e perscrutadores, azeviche, pouco mais é dado a ver. O sinal de uma vida envolta dos pés à cabeça, em camadas de preto, por véus quasi-transparentes   que sobrepostos são opacos. E como só despontam os olhos, concentram neles toda a sua energia, a comunicação inteira de um corpo, que quer escapar mas não pode. Imagina-se que aquele corpo que se imagina, tem os seus ângulos, uma harmonia. Imagina-se também que tem recônditos abrigados, outros menos. Aos olhos exteriores do desconhecido que os observa, não têm forma, são voláteis. Corpos fantasmagóricos, espectros à luz do dia. Corpos escondidos, entaipados, recolhidos em