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ANJO

Barricado na minha janela, fechada, observo o mundo. O mundo é a rua que se apresenta diante mim, que a consigo ver desde o seu início, à esquerda, até o seu fim, à direita, porque é nesse sentido  - vá-se a saber - que fluem as pessoas e os carros que passam na rua que me consome o tempo dos dias. A minha rua é o mundo, é pequeno e previsível o meu mundo. Nela não acontece nada de especial, sempre as mesmas caras, praticamente; os carros identifico os que estacionam e não me interessam particularmente. Há crianças na minha rua que jogam futebol, são irritantemente barulhentas, porque estou para velho e tudo me irrita. Corro com elas quando posso e depois fico com remorsos porque já fui criança e gostava de jogar futebol na rua. Em frente da minha janela, mesmo do outro lado, há uma paragem de autocarro suburbano, que por ser suburbano passa muito espaçadamente, sem hora marcada, vazio de poucas pessoas, geralmente de cor, sentadas e inermes. Desistidas. Esta

GABINETE DAS CURIOSIDADES - CRÓNICA ÚLTIMA

Pintar é estar doente dos olhos. Fica bem que as histórias tenham um fim e sigam canonicamente as regras ditadas de as bem contar. Não há ninguém que não goste de um bom ou mau desfecho, tem é que haver um, para se seguir em frente e não ficar preso ao passado. Estar colado a ontem é desencorajador e se não se despega, aumentam-se atrasos irrecuperáveis, o tempo a passar, que voa, e não se regressar ao presente, que só assim se pode desejar o futuro. o Gabinete das curiosidades foi um tentativa volátil mas intencional de museu privado de objectos de vida. Não foi uma tentativa, foi um acontecimento e não termina porque os objectos se tenham desentendido - vivem há muito juntos -, têm naturalmente os seus enguiços, picos de irrazoabilidade, mas são uma família, por vezes italiana: muita gritaria mas amam-se todos. O Gabinete termina porque tudo tem um fim e este espaço vai ser um novo templo de finos manjares, sabores dos céus, na terra, borbulhantes, que mais tarde se anunc

VAMOS BRINCAR AS PALAVRAS

Não é boa a primeira impressão de uma parede ampla preenchida com livros, desde o chão de madeira corrida encerada até ao tecto de estuque com perfis brancos trabalhados. Da aparente inutilidade de um objecto ao conforto da sua companhia, por vezes corre uma vida, por vezes uma é pouco. Já conhecia os livros e iniciara uma modesta mas voluntariosa biblioteca com dois ou três fascículos de banda desenhada a preto no branco, do personagem Major Alvega, aviador português ao serviço de sua majestade na velha aliada Albion . É possível ter sido o meu primeiro herói, ele e Toto o cão caçador do meu avô, animal fidelíssimo com uma paciência búdica que encarnava a contragosto o papel de touro em lides improvisadas que eu fazia no quintal da nossa casa anterior a esta, onde nasci mas não cresci. A sala do Pedro tinha um oceano de livros e era de pôr a escassear o fôlego a um pechincho. Alguns livros cortam-nos a respiração, deixam-nos ofegantes, mas é prazer. Com sete ou o

ENCONTROS

Temos dos climas mais afáveis da vizinhança, mas ficamos em casa. Nem para abraçar os nossos correligionários nos damos ao trabalho – que seria prazer – de sair e visitá-los. Ficamos, e entricheirados. Semi corremos a cortina da janela e olhamos de soslaio para a rua. Observamos os corajosos que se aventuraram a passear num dia perfeitamente inofensivo, apesar de chover, que faz falta. Estamos a vê-los mas eles não sabem da nossa existência, vêem estores brancos. Não saímos à rua, mas o facto de termos montado guarda na janela como observatório do que se passa lá fora, é como se tivéssemos saído. Quando cai a noite vamos contar aos nossos, à volta da mesa, que somos corajosos e sabemos tudo o que se passou na rua, porque estivemos lá, no local próprio, fora. Ou seja, na fronteira marcada pelo vidro da janela,  vasculhando com o olhar mortiço o movimento, fora. Somos heróis  dos sonhos, ou da preguiça, ou de nada para além de uma vontade imensamente frouxa,

UMA ACÇÃO COM SENTIDO

É uma coisa minha, uma conversa a sós, íntima, que não quero anunciar aos ventos e às brisas. Não interessa anunciar. Sou só eu e ela, e faz-se a síntese do meu universo espiritual. E essa coisa privada, que se pode chamar fé, é um convívio pessoalíssimo. Nestas coisas, cada um com o seu interior. É desnecessário trocar impressões com os outros, a experiência é individual e intrínseca, forra-nos por dentro. No restolho das arenas do mundo, o que se diz que se vê, o que se monta, é um fogo-de-artifício, Nem sequer é cumplicidade com os outros, é alienação e uma velinha. Tropeço em Jesus todos os dias, temos queda um para o outro. A pedir nas ruas, a arrumar carros,  na pediatria oncológica e outros médicos e enfermeiras, a esbracejar porque o barco afundou mesmo à porta do paraíso. Nunca o vi de fato e gravata de seda a fumar charuto,  mas diz-se que as aparições são à medida de quem as vê. Alguém com certeza verá Jesus a fumar um be

ENCICLOPEDISTA

Gosto de manhãs de chuva, o som que ela faz, gosto que se prolongue tarde dentro. pacifica-me e molha. Limpa. É em dias de chuva que se vê a fibra dos homens. Os que se deprimem e queixam, os que molham as solas dos sapatos e palmilham. Para além de tudo isto a chuva purifica. Quando deixa de cair, põe os pássaros a cantar, as folhas das árvores abanam as suas asas, que são folhas, e reanimam a fotossíntese com mais vigor. Que esteja descrito em anuários ninguém sabe mais disto do que  Manoel de Barros. Escreveu em poesia uma enciclopédia da natureza. Conseguiu o feito de viver noventa e sete anos e morrer sem presunção. Hoje chove, Muitissimamente. Enquanto seco as solas dos sapatos, releio a sua ciência poética, com os pés secos em cima da mesa da sala. Atitude inapropriada mas cómoda. Faço-o sem culpa e nem sequer vou disfarçar se alguém entrar. Faço-o com todo o prazer na companhia do Manoel e est

TELEVISÃO

Neste exactíssimo momento dou por encerrado o dia. Está na casualidade o vir a acontecer um grande desprendimento de responsabilidades, por tudo o que aconteceu nas últimas vinte e quatro horas. Passado passou, não se pensa mais nisso. Amanhã, se despertar para aí virado, e o banho que decide muito do futuro do dia correr bem, encaro a hipótese de querer dar uma volta ao mundo. Se mais para a tarde me começar a aborrecer e chegar à conclusão de que não vale a pena o esforço, adio tudo para um dia próximo, ou longínquo, logo se verá. Uma coisa é certa, chegada a noite só quero ver televisão e não ter nada a ver com o que se passou durante o dia, estou isento do que aconteceu, se houve asneira ou não, o problema é dos outros. E se dormir em pesadelo, com interrupções para a insónia, amanhã então, será um dia de impropérios, asneiras, interjeições retorcidas, o que vier à boca e à mão para mandar o mundo aquela parte, a parte que me chateia do mundo