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Mensagens

ENCONTROS

Temos dos climas mais afáveis da vizinhança, mas ficamos em casa. Nem para abraçar os nossos correligionários nos damos ao trabalho – que seria prazer – de sair e visitá-los. Ficamos, e entricheirados. Semi corremos a cortina da janela e olhamos de soslaio para a rua. Observamos os corajosos que se aventuraram a passear num dia perfeitamente inofensivo, apesar de chover, que faz falta. Estamos a vê-los mas eles não sabem da nossa existência, vêem estores brancos. Não saímos à rua, mas o facto de termos montado guarda na janela como observatório do que se passa lá fora, é como se tivéssemos saído. Quando cai a noite vamos contar aos nossos, à volta da mesa, que somos corajosos e sabemos tudo o que se passou na rua, porque estivemos lá, no local próprio, fora. Ou seja, na fronteira marcada pelo vidro da janela,  vasculhando com o olhar mortiço o movimento, fora. Somos heróis  dos sonhos, ou da preguiça, ou de nada para além de uma vontade imensamente frouxa,

UMA ACÇÃO COM SENTIDO

É uma coisa minha, uma conversa a sós, íntima, que não quero anunciar aos ventos e às brisas. Não interessa anunciar. Sou só eu e ela, e faz-se a síntese do meu universo espiritual. E essa coisa privada, que se pode chamar fé, é um convívio pessoalíssimo. Nestas coisas, cada um com o seu interior. É desnecessário trocar impressões com os outros, a experiência é individual e intrínseca, forra-nos por dentro. No restolho das arenas do mundo, o que se diz que se vê, o que se monta, é um fogo-de-artifício, Nem sequer é cumplicidade com os outros, é alienação e uma velinha. Tropeço em Jesus todos os dias, temos queda um para o outro. A pedir nas ruas, a arrumar carros,  na pediatria oncológica e outros médicos e enfermeiras, a esbracejar porque o barco afundou mesmo à porta do paraíso. Nunca o vi de fato e gravata de seda a fumar charuto,  mas diz-se que as aparições são à medida de quem as vê. Alguém com certeza verá Jesus a fumar um be

ENCICLOPEDISTA

Gosto de manhãs de chuva, o som que ela faz, gosto que se prolongue tarde dentro. pacifica-me e molha. Limpa. É em dias de chuva que se vê a fibra dos homens. Os que se deprimem e queixam, os que molham as solas dos sapatos e palmilham. Para além de tudo isto a chuva purifica. Quando deixa de cair, põe os pássaros a cantar, as folhas das árvores abanam as suas asas, que são folhas, e reanimam a fotossíntese com mais vigor. Que esteja descrito em anuários ninguém sabe mais disto do que  Manoel de Barros. Escreveu em poesia uma enciclopédia da natureza. Conseguiu o feito de viver noventa e sete anos e morrer sem presunção. Hoje chove, Muitissimamente. Enquanto seco as solas dos sapatos, releio a sua ciência poética, com os pés secos em cima da mesa da sala. Atitude inapropriada mas cómoda. Faço-o sem culpa e nem sequer vou disfarçar se alguém entrar. Faço-o com todo o prazer na companhia do Manoel e est

TELEVISÃO

Neste exactíssimo momento dou por encerrado o dia. Está na casualidade o vir a acontecer um grande desprendimento de responsabilidades, por tudo o que aconteceu nas últimas vinte e quatro horas. Passado passou, não se pensa mais nisso. Amanhã, se despertar para aí virado, e o banho que decide muito do futuro do dia correr bem, encaro a hipótese de querer dar uma volta ao mundo. Se mais para a tarde me começar a aborrecer e chegar à conclusão de que não vale a pena o esforço, adio tudo para um dia próximo, ou longínquo, logo se verá. Uma coisa é certa, chegada a noite só quero ver televisão e não ter nada a ver com o que se passou durante o dia, estou isento do que aconteceu, se houve asneira ou não, o problema é dos outros. E se dormir em pesadelo, com interrupções para a insónia, amanhã então, será um dia de impropérios, asneiras, interjeições retorcidas, o que vier à boca e à mão para mandar o mundo aquela parte, a parte que me chateia do mundo

ERA INEVITÁVEL, DESDE O PRIMEIRO INSTANTE

Quase juntos, nós, chegando-se, um não saber porquê de querer estar juntinhos, coladinhos, um toque ainda estranho que apetece muito. Acabados de conhecer. E usar diminutos, nesta conversa, interior, muda, de apaixonados, quando ainda mal começamos a ser. Apaixonados. Aprovando com o olhar a linguagem do teu corpo, orgulhoso, querendo cantar para o mundo, a irrepreensível beleza – nos meus olhos – do teu corpo que ainda não explorei. Acabámos de nos apresentar e já estou assim, desarmado e pelo beiço.   

PERCURSOS DO DESASSOSSEGO

Estão todos convidados: PERCURSOS DO DESSASSOSSEGO “A arte serve como fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer” , diz Pessoa. É o livro do Desassossego, um espaço enorme, sem fim, misterioso, sugestivo, que me encaminha para a criação dos meus percursos do desassossego. Este projecto é,  como me acontece frequentemente, a consequência de um eco, que ecoa persistentemente na minha mémoria, desde a primeira leitura deste livro que ocupa dentro de mim um espaço mental meu amplo e profundo. Em  Março de 2016, tomei a decisão, impulsionada por esta intensidade emocional, de rumar a Lisboa, percorrê-la durante quinze dias. Nesses percursos vou transformando em experiência, o que a minha imaginação alimentou durante bastante tempo. A subjectividade do heterónimo de Pessoa ,  Bernardo Soares, projecta-se sobre as banalidades da vida e do quotidiano, e as minhas emoções baixam um filtro sobre as minhas reflexões. Durante quinze dias, quinze percursos diferen

A POESIA

A poesia é o espaço das coisas improváveis, a possibilidade infinda dos impossíveis. Tudo pode ser belamente dito em todas as línguas, sem concessões nem acordos, a não ser o acordo de que a poesia é a mais livre das expressões. Na terra incógnita da poesia, fazem-se fumigações diárias para eliminar as unanimidades aceites por cem por cento de todos. A poesia é encantadoramente rebelde e gosta de picardias. É necessária pelo menos uma dissonância para se viver na liberdade deste imenso país inóspito que fica depois da cartografia das outras artes. Quem tiver essa bagagem de liberdade, aventure-se nela. E não se julgue que é longínqua, que a viagem é demorada. É já ali, a poesia. Virar em qualquer direcção, ao contornar o cotovelo apertado do pudor. Ultrapassado esse nó, dá-se de caras com a terra prometida. Não tem portageiros nem fronteira. É fácil conseguir  autorização de residência. Depois, é desfrutar. É um país cheio de belezas naturais