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UM ANJO

Hoje cruzei-me com um anjo, numa paragem de autocarro. Andam por todo o lado, principalmente nos locais menos prováveis. As pessoas dizem que não os veem, não os encontram, porque andam tão assolapadas nos seus aturdimentos da vida, que só olham e não veem. Este anjo apresentava-se banal. Não irradiava luminescências, nem outros fogachos de artifício. Era um ser simples disfarçado em cão. A don a, um ser igualmente lindíssimo, afagava-o na paragem do autocarro. Afagava-o mas não o via, não podia. O cão-anjo, cumprindo a rigor os preceitos das entidades angelicais, estava simplesmente presente, derretendo-se com as carícias da dona. E olhava-a dizendo precisamente isso: amor. “Aqui estou para te guiar e tu comigo para me fazeres festas, que é o que mais gosto". Vi hoje um anjo, e fiquei especado e parvo a vê-los os dois amando-se perdidamente em plena via pública. Ganhei este fim de dia de Abril ensolarado. Que raio de mês este, que mexe tanto comigo!

QUE BOM, ABRIL DE NOVO

Hoje o dia nasceu em desmesuras e exuberante. Talvez por ser Abril. A passarada, o Sol quente, a luz brilhante, não se deram a trabalhos: irromperam. E nós, ansiosos por Abril, aperaltamo-nos de contentes. Se começa assim, vai ser um bom mês, o que aumenta as expectativas. De todos os meses do ano – cada um com os seus encantos – Abril sempre trouxe grandes esperanças. É por isso que estamos como crianças irrequietas. Soltamo-nos mais convencidos, e bem, que as trevas dos frios invernos ficaram para trás. A Primavera é o renascimento, mas para nós conta a dobrar: as flores que desabrocham, são as flores que trazemos na lapela, e não as aguentamos na mão excitados de as oferecer. Supimpa e inolvidável este Abril, esperamos que siga o seu caminho e nos embale soltos e confiantes até ao fim do ano. O doce calor do renascimento anima-nos tudo, é a nossa fotossíntese. 

O SUICÍDIO

No reino animal o suicídio acontece pouco. Acontece julgamos nós (que não estamos na cabeça dos animais) sem razão pensada deles, por desencadeamento de mecanismos dúbios. Só os homens o fazem por vontade própria, e geralmente tomam tempo para decidir a forma e o momento, ou quando estão encurralados. É um acto difícil de julgar. Cobardia para uns, da maior das nobrezas em espíritos de índole romântica. Seja como for é uma decisão de grande responsabilidade, mesmo para os partidários da amoralidade nos acasos do universo. Tento entender essa possibilidade, compreender os becos sem saída, o cansaço absoluto, a situação terminal. Não sei o que me espera e ainda bem. Lamento não estar confortável com conjugações  karmicas , chamamentos a paraísos paradisíacos, sacrifícios humanos para ganhar a vida eterna. A minha espiritualidade, boçal e eventualmente mesquinha, resume-se a cumprir a única existência que conheço: este momento. Amanhã, gosto de olhar para o

RIO DE ONOR: A FRONTEIRA INVISÍVEL

T odas as manhãs andam os dois numa trabalheira: o cão, enorme, todo branco com uma mascarilha farrusca no focinho, a dar-se ares de encapuzado, e o pastor ensimesmado e de falas nenhumas. Nunca se lhes viu trocarem uma palavra, apesar de andarem há anos juntos. Uma aldeia no fim do mundo, ou no princípio. Uma linha imaginária a traçar um meio, uma divisão territorial abstracta nas gavetas dos burocratas. De um lado Portugal, do outro a Espanha, sem diferenças, afinal sem lados. Só os transeuntes raros e vagos, põem nos óculos esses filtros, porque leram algures, ou ouviram dizer algures que neste povoado comunitário – metade de uns, metade de outros – as pessoas coexistem sem fronteiras, o que de si dá o tom sensacionalista à notícia: uma aldeia excêntrica onde duas nacionalidades comuns coabitam. Partilha do mesmo espaço, em casas de granito com telhados de xisto, que se espelham num rio cristalino nos dias em que o sol projecta imagens. Para se chegar a es

CARTA A SCHAUBLE

U m olhar carregado de ódio. Não é culpa nossa. A vida distribui as suas partidas por cada um, acima de tudo devemos ser decentes com os outros. Não temos culpa. Na fragilidade com que se nasce, vir a ser forte é um desfecho sublime. E muito bem pensado. Só se pode ser “forte” para ajudar os outros a crescerem, enquanto nós também crescemos.  Ser forte porque se ganha o arbítrio de pisar as “beatas”, é debilidade. Ser irredutível nas ideias é debilidade. Centrados sobre as nossas existências diferentes, quiçá difíceis, perdemos a lucidez do real. Ou seja, só o vemos à distância das nossas sombras. Escapa-nos a perspectiva. Às voltas e às noras com as obsessões, vemos desfocado. Amesquinhamo-nos. As decisões que decretamos ao mundo envinagram-se. Decisões dessas não são das boas, são chicotadas masoquistas. Nessa loucura chegamos mesmo ao ponto de deixar de ver, e ouvir, temos as conversas dos outros por débeis e fracamente inteligentes, inebriados pelo re

“A troika pecou contra a dignidade”.

São  deuses, e olham para os infernos com o enfado natural dos deuses, porque não há seres superiores aos deuses que julguem as suas criações imperfeitas. E assim se peca sem castigo, cometendo todas as obscenidades sem que os mortais reajam. Ainda ontem  açanhavam os olhos aos seus pequeninos estendedores de tapetes - dizendo-lhes que já estavam a relaxar nas reformas.  Estes tremelicando para conseguirem o “ quadro de honra ” logo foram pressurosos ao balcão mais próximo de uma qualquer Goldman Sachs , depositar por adiantado uma fatia do espúrio  para pagamento de juros ( são os juros que eles querem pagos a horas,  que a divida propriamente dita, nenhum país paga: é um conceito virtual).  Hoje, porque lhes convêm para enviar os gregos para as trevas, ou pô-los obedientes e bem adestrados e validarem as suas teorias da ditadura do dinheiro e dos interesses próprios, voltamos a ser o exemplo. E o ansioso que estamos por ser exemplo do retorno a níveis de pobreza

MORRESTE--ME, LAMPEDUSA

Há nomes de locais na cartografia do mundo e na dos sonhos, que irrompem sem convite, a seu prazer, imiscuindo-se no pensamento quotidiano dos seres. Uns existem na realidade, outros, imaginários, existem igualmente mas a níveis mais subtis. “Mediterrâneo” existe, é um mar acolhedor porque fechado e de boas águas, reconhecido como matriz, a “grande Mãe”, deste ciclo civilizacional. “Lampedusa”, é uma ilha no meio deste mar, não sei se bela ou não, imagino-a de muitas belezas, influenciado pelas leituras de romances com qualidade. Como os livros – mais ainda os de histórias improváveis bem escritas – são as vitaminas dos sonhos, é perfeitamente natural que as suas palavras influenciem muito a opinião dos leitores, porque eles não mentem e quem lê acredita. Tenho em grande consideração o Mediterrâneo e Lampedusa. Naveguei suavemente no primeiro, a ilha ainda não a descobri, mas gostava um dia. Ficaria muito confortável – para não desarmar a ingenuidade que ganhei n